Antes do equinócio o tempo mudou. Com as marés altas e
fortes, as ondas deixaram sobre a areia toda a espécie de lixo, calhaus rolados,
paus, cordas, redes de emalhar. O rapaz gostava dos entardeceres enevoados, a
praia deserta, ele e o cão e as gaivotas nos seus jogos e lutas e o cão a
ladrar em corridas loucas para as afugentar. O rapaz
guardava no bolso as pedras e as conchas, e registava na memória muitos objetos
por identificar. Foi assim que ele a encontrou. Um pedaço de madeira sujo de
terra, esburacado, mas simultaneamente bem esculpido e desenhado, a lembrar uma
ferramenta antiga, uma espátula. O rapaz observou-o, dedilhou-o como um
pianista, sentiu-lhe o cheiro, aproximou-o do ouvido direito e sem hesitar, levou-o
consigo para casa.
O que trazes aí, perguntou o pai. Um tesouro,
respondeu o rapaz, e riu-se mostrando-lhe o pedaço de madeira. O pai pegou-lhe,
olhou-o com atenção e disse, parece-me uma colher de pau perfurada pela erosão,
quem sabe uma colher de pau mágica. E os olhos do rapaz brilharam.
Cuidadosamente colocaram-na numa caixa de cartão junto da
varanda, para que apanhasse humidade e luz solar e lhe fizessem companhia as flores, os
ramos das árvores e os pássaros diurnos.
Nessa noite o rapaz teve um pesadelo. Viajava como
ajudante de cozinha num grande veleiro repleto de marinheiros esfomeados e a
cada madrugada era obrigado a cozinhar cinco quilos de papas de aveia e a
mexê-las com aquela colher de pau. O tacho era enorme, as papas ferviam e cresciam
e o rapaz cansado murmurava, se ao menos fosse mágica esta colher de pau, se
fosse mágica.
Acordou perturbado e a suar, mas como era um rapaz
curioso muito mais do que assustadiço, levantou-se e sem fazer um ruído, nem
ligar as luzes, foi até à varanda espreitar a caixa de cartão. A colher de pau permanecia
lá, quieta, misteriosa, estranhamente vivaz. Na claridade da antemanhã o rapaz
adormeceu agarrado ao cão e à caixa. E exorcizando o pesadelo, sonhou que o pequeno ajudante de cozinha
que era ele próprio ou talvez não, se libertava do tacho, da aveia, dos
marinheiros embrutecidos pela borrasca, pegava na colher de pau mágica e
lançavam-se os dois ao mar, enfrentado as correntes, nadando com as baleias
brancas e os golfinhos, aportando às ilhas equatoriais onde nas noites de lua nova o rapaz e a colher faziam sopa de estrelas. E ainda hoje o ajudante de cozinha era um peixe e a colher, um pedaço mágico de madeira envelhecida.
Passaram-se alguns meses, o rapaz cresceu um palmo e
meio, o cão continuou meigo e brincalhão, o pai perdeu dois cabelos louros e
dentro da caixa de cartão qualquer coisa de maravilhoso despontava muito
lentamente. Uma folha, duas folhas, e por fim várias plantas. E de um lado
floriram as orquídeas anãs. Do outro, as pequenas orquídeas colher-de-pau.
7 comentários:
Muito belo, como sempre, o seu conto...
MANUELA BAPTISTA
COLHER DE PAU
Colher de pau
sonho mágico
que de ti sai
e aqui cai
BRAVO
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 7 de Julho de 2019
Já tinha saudades de te ler, Manuela.
Afinal era mesmo mágica a colher de pau onde nasceram as orquídeas…
Uma boa semana.
Um beijo.
um texto encantador! a que não falta imaginação e talento.
hei-de vir mais vezes, se me permitir!
abraço
Boa estória prenhe de fantasia, como pertence ser para o ser.
O melhor é dado no epílogo florido, mas, o desenrolar da narrativa está perfeito. Prende, cativa o leitor do início ao fim.
Beijo.
Delícia de texto.
Delicado e doce, com um fim delicioso que eu não esperava.
Muito obrigada por esta belissíma partilha.
Beijinhos
:)
Que belo ver a magia acontecer num pedaço de pau velho.
Pode acontecer com um de nós!
Beijinho.
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