Lembro os estendais da minha infância, daquela outra
casa, a boa esperança, que invocávamos à tardinha enquanto a avó desfiava o
terço pelas almas, pela paz, para que não se nos apagasse a memória das coisas
belas, como a bordadura das dobras, das fronhas e da esperança. Apenas uma de
nós herdara os seus cabelos claros e as sardas no nariz e as flores de camomila
a enfeitá-los para que aclarassem cada vez mais. Da família das compostas, nós
e as flores, as margaridas, as arnicas, as maravilhas, os dentes-de-leão. À
noite pacificavam os sonos e de dia, a ansiedade das equações e dos verbos
transitivos. E quando de tanto chorar uma desilusão qualquer, os olhos nos
inchavam, a infusão da camomila refrescava-os tal e qual a limonada gelada no
verão.
Refletem a luz nos campos abertos, nas bermas das
estradas. O disco solar e o branco luminoso e os estendais de igualmente
brancos lençóis e a música do vento a fazê-los dançar e a soltar as molas de
madeira de pinho. Nos dias de festa a casa enchia e não chegavam os lençóis
bordados para todas as camas. Ficávamos nós então com os mais velhos, macios,
passajados e aquele prazer imenso de os romper com os pés magros e rir quase
até de madrugada.
Não fui eu que herdei os cabelos claros, as sardas, o
terço, a sabedoria das plantas, a boa esperança. Guardei somente a dança dos
lençóis de linho e a luz a atravessar os campos abertos e as bermas da estrada.
Matricaria chamomilla
10 comentários:
MANUELA BAPTISTA
... como se o que herdaste fosse pouco ...!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 24 de Maio de 2017
Tão doce, tão terno esse recordar do antigamente. Abraço-te com carinho.
A tua herança foi a que te cabia por direito próprio e só assim o podes dizer: "Guardei somente a dança dos lençóis de linho e a luz a atravessar os campos abertos e as bermas da estrada". Entende-se...
Um beijo, Manuela.
Me parecem dias macios como o veludo...
Queria voltar nesses tempos onde a doçura reinava!
Beijinho Manuela!
Bia <º(((<
Tenho uma amiga que herdou o nariz de uma personagem cujo aparecimento ao público remonta a 1883...
Ainda hoje a herança se mantém na posse da herdeira, assim como, a personagem a quem me refiro se tornou intemporal e, claro está, imortal :)
Bom fim de semana!
Íssimo feliz
...o Pinóquio? :))
Belas são as danças pelas noites de verão.
Veio a primavera, e mentiu às pétalas: de dia, dançavam, mas, pela noite, o calor trazia nuvens tropicais.
Eram corolas douradas a baixar rios brancos de gotas por todos os lados.
Quando o tempo seco chegar, já não mais se lembrarão
Herdou a sabedoria de nos fazer transportar para o belo ao desfiar as memórias mágicas da infância.
Uma braço para si, Manuela.
bjs
(agora a sério)
este é um texto belíssimo e repleto de significado.
dos mais belos que tenho lido por aqui...
há quem diga que com o avançar da idade, as memórias da infância regressam mais nítidas e permanecem para sempre... foi o que senti hoje aqui!
"E quando de tanto chorar uma desilusão qualquer" _______________ tão belo!
e vou,,, porque me espera "a ansiedade das equações e dos verbos transitivos",,, ainda que por ora. a.penas...
Íssimo feliz
....das coisas mais belas que já li!
abç
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