Cresce do outro lado do muro, onde habita o senhor Ming e
o seu cão. Passeiam os dois de manhã e à tardinha e assemelham-se, o cão e o
senhor Ming. Têm o mesmo jeito de caminhar, as pernas ligeiramente arqueadas, o
nariz levantado a cheirar o ar. No instante em que chegam ao cruzamento a
simbiose altera-se, o senhor Ming quer continuar em frente, o cão teima em
virar à esquerda. O cão vence sempre. Para dizer a verdade quem se chama Ming é
o cão, mas ignorando o nome do dono, identifico-o pelo nome do cão. Vivem
outros cães na minha rua, chego à fala com eles e apenas mais tarde reconheço os
donos. É uma questão de confiança.
Ao Stern, chamei-lhe Spiegel durante dois anos e ele não
pareceu importar-se. É um cão viajante e regressou com a dona, a senhora Stern.
Despejam o lixo pelas oito da manhã e em seguida o Stern faz o reconhecimento olfativo
dos postes da luz e dos quintais abandonados. Tem uma vida independente e só
regressa a casa quando lhe apetece. Fica ali plantado em frente do portão horas
a fio. Às vezes pergunto-lhe, queres que eu toque à campainha? Ele abana a
cauda, os olhos enormes e vivaços e agradece com um latido ou dois.
Nem todos são simpáticos. No número três há um exemplar
dissimulado. Desço a rua pelo passeio do lado direito, um silêncio de inverno e
de repente, pendurado na vedação a rosnar e a babar-se de raiva, o cão cativo
de quem ninguém parece gostar. Imagino que sejam o senhor Malício e o seu cão.
E os solitários, como o Preto, sem o senhor Preto, caminha devagar, a
desconfiar de afagos.
Também moram por aqui os que já se foram embora e que não
esquecemos e ladram de noite a afastar pesadelos e bichos-do-mato.
E no entanto, eu desejava falar da árvore que cresce do
outro lado do muro. Largou-se de folhas e de ninhos e range com o vento. Como
se quebrasse ao latido de um cão.
20 comentários:
MANUELA BAPTISTA
Maravilhoso
e quanto à árvore ... despida abre-se, enlaçando-o, às necessidades de um cão
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 9 de Janeiro de 2016
Há sempre quem não se cale
no outro lado do cais
Bj
E o pensamento tem essa facilidade incrível de divagar, assim, flutuaram as ideias da árvore que se agita com o vento do inverno e os habitantes de quatro patas da rua.
Bom fim de semana
Beijinhos
Maria
O cão
canino
de quem ninguém gosta e apenas protege a árvore :-)
Os cães ladram
os donos passam
e a árvore cresce
e nem se dá pelo seu crescer
Se não existisse árvore como poderia haver cão? A não ser daqueles que ferram o cão...
Como sempre, a imaginação aparece e cresce nos contos da Manuela.
.
.
. e no "silêncio de inverno" há sempre histórias para contar . com a certeza de que todas têm q.b. de realidade e uma imensa vastidão . de coração .
.
. bom resto de fim de semana . sim porque ainda temos quatro horas e tal . ah . e tal . pois temos . :) .
.
. íssimo feliz .
.
.
Não falaste da árvore? Todos os cães passavam por ela com os donos quando iam ter com a amiga tão especial que és...
Já nem sei o que te diga destas histórias tão belas...
Um beijo, Manuela.
Duas pazadas de luz, e o inverno parece partir. Que parta :-)
gosto da originalidade da tua escrita Manela... quase que consigo ver os cães e claro está a árvore...
beijinho
:)
Tenha piedade de mim,
Manuela,
do sr. Ming,
do seu cão, que roía ossos, tirando ele era eu,
e mais a Hanaé e a Jacintinha,
agarradas aos ossos, atrás do muro.
Cão da minha vida,
a salivar,
dá-me as coordenadas da mostarda que estou a arder de ketchup,
que será de nós, com esta glicemia e este colesterol galopante, é um gelo que vem por mim acima, não há cão que me console,
e os ossos, senhora,
fale-lhes dos ossos,
do esternocleidomastoideu,
a primeira vez que fui às Galerias Lafayette deram-me um esternocleidomastoideu,
fale-he dos ossos,
do que os Leónidas fazem bem aos ossos,
e o Claudio Corallo, que faz o melhor chocolate do mundo,
a Cantata do Perónio,
Sonatas em Omoplatas,
um lápis na bacia,
salivo como uma cadela,
e os ossos?...,
fosse eu cão e estaria o tempo todo a roer,
dê-me as coordenadas dos ossos,
Manuela,
que eu perdi o GPS,
e ando desvairada, de pêndulo na mão,
vem aí um ciclone dos Açores,
leva-nos a pele e a carne
e só ficam os ossos.
Fale-nos desses ossos
Manuela,
fale-nos,
por favor!!!...
Para lá dos belos textos e imagens da Manuela, estas caixas de comentários têm uma virtude única, que é a de atraírem toda a espécie de tarados e taradas, o que as torna num fenómeno da blogosfera. Felizmente que estas pessoas nunca se reúnem para jantar :-)
As suas histórias, cara Manuela, são cheias de humanidade, algo que se vai escoando entre os dedos e lá vamos nós atrás desses sentimentos a querer interpretá-los, sabendo que eles lá estão, latentes e reais.
Bj
Olinda
A árvore é a protagonista que consegue reunir todos os elementos deste conto e, estou em crer que regressará na Primavera toda esplendorosa.
Bom domingo e boas inspirações, Manuela.
E lá se vão os cães e seus donos... Certa vez tive sete deles, cada um diferente do outro, porém todos amigos de infância!
Ah, e adoravam também as árvores da rua, onde deitavam à sombra...
Beijinhos Manuela
Bia <°(((<
A árvore quebra ao latido do vento
É natural que ele deseje falar da árvore, qual o melhor assunto que as coisas belas e simples da vida? :)
Abraço :)
~ ~ ~
~~~ Gosto muito de cães amorosos...
Gostei
da sua rua poliglota e dos seus vizinhos...
Linda - a árvore - que jamais foi esquecida.
Textos de uma criatividade surpreendente!
~~~ Beijinho amigo.~~~
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
E onde estão os ossos do Sr. Ming,
minha amiga Manuela,
fale-lhes dos ossos,
destas castanholas brancas,
treco, treco, treco,
clop, clop, clop,
toda eu me desconjunto e desfaço em vértebras, os cães que ladram e eu deixo as peças pelo caminho,
sou agora um dueto de pianos, como os ossos do "Carnaval dos Animais",
lembre-se desta sua Hanaé a quem levaram as carnes e as fibras,
estendo a falange, faço fisgas com as fibras e lá vou, como uma celeste pombinha, a voar, a voar,
por cima dessa árvore inesquecível,
não há noite que me segue :-)
O Sr. Ming passou por mim, estava eu no colchão toda revirada,
perguntou,
és a Carrie, com esses olhos todos para trás, só te falta estar babada,
e o cão alçou a perna,
ai, que vergonha,
isto de ser inválida tem muito que se lhe diga, mas para que em vós a esperança não feneça,
poderia meu destino ter sido pior, fosse o cão doberman negro e o sr. Ming um nativo do Sal, com um nomezinho chinês, só para disfarçar.
Bem hajam
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