conto do pássaro que atravessou a indiferença e continuou a voar





Era um pássaro comum. Peito acastanhado, um pouco baço, asas, cauda e bico azul. Era esta a sua marca, o bico azul. Gostava de grãos, sementes, migalhas de pão. Não cantava especialmente bem e partilhava o ninho com mais três irmãos, comuns em tudo, menos no bico azul.
Com a chegada dos dias frios o pássaro sentiu uma alegria inquieta. Já não lhe bastava o ninho, a árvore, as poças de água. E num impulso, na antemanhã, ainda os irmãos dormiam, abriu as asas e voou. Ultrapassou a linha dos telhados altos, a copa dos pinheiros mansos, a quilha apontada em direção ao mar. Quando chegou à praia pousou desajeitadamente numa rocha, atónito com aquela extensão de água, com os gritos de um bando de pássaros grandes. O pássaro era pequeno e ágil e desconhecia a existência de gaivotas, grandes, vorazes, brigonas. Desaparece, disse-lhe uma delas particularmente antipática. Não me pareces uma ave marinha, acrescentou. Então de que cor é a minha cauda, perguntou-lhe o pássaro. A gaivota enfureceu-se, abriu as asas, ameaçou-o com o bico aberto incitando as outras gaivotas a expulsá-lo dali.
O pássaro não compreendeu a ira das gaivotas, ele não constituía uma ameaça para elas. Não se alimentava de peixe, o oceano parecia-lhe infindo, incontáveis os grãos de areia, as rochas enormes e sólidas e o espaço absoluto. No entanto sentindo-se indesejado, afastou-se.
Durante aquela manhã encontrou outros seres até ali desconhecidos para ele, e quase tão assustadores como as gaivotas da praia: dois cães perdigueiros, um gato siamês, três ratazanas e um pinguim que tinha perdido um glaciar. Insistente, perguntava-lhes, querem voar comigo? Não queriam.
Foi então que avistou o rapaz. Sentado num muro, as pernas a baloiçar, um gorro de lã azul enfiado até às orelhas e cantarolava. O pássaro esvoaçou à sua volta e assobiou. O rapaz respondeu com outro assobio e estendeu-lhe o dedo indicador da mão esquerda e o pássaro pousou. O rapaz desceu do muro, abriu os braços e sempre com o pássaro no dedo, simulou um voo planado à roda das árvores, dos postes de eletricidade, dos carros estacionados junto aos passeios. O pássaro rejubilou. O rapaz levou o pássaro para casa e apresentou-lhe os três irmãos mais velhos, todos de gorro azul como ele. Deu-lhe migalhas de pão, assobiou-lhe e deixou-o andar à solta por ali.
O pássaro desejava contar ao rapaz sobre as gaivotas antipáticas e os outros animais com medo de voar, mas cada vez que tentava, assobiava apenas e o rapaz ria-se. E o pássaro foi ficando e aprendeu a tricotar com o bico azul, quatro gorros de lã azul. Um dia sentiu saudades dos seus irmãos e dizendo até já aos rapazes de gorro azul, voou em direção ao ninho, à árvore, às poças de água.



Os pássaros de bico azul do advento






9 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA

Magníficos como sempre, a história e os desenhos que já tardavam!

Depois do Advento, o Natal ...

Boas Festas e um Santo Natal!

Beijinhos

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 6 de Dezembro de 2019

Laura Ferreira disse...

gostei tanto!

Rogério G.V. Pereira disse...

depois de ler
confesso entrar
em crise de identidade
não sei
se me identifico
com o pássaro
se com o rapaz
se com o voo
da gaivota
do qual aqui não dás conta

mas isso, que importa?

Mar Arável disse...

Sempre excelente
Há pássaros assim como alguns de nós
em família e outros amigos

Bj

Graça Pires disse...

Como eu já tinha tantas saudades das tuas histórias, Manuela! Identifiquei-me com o pássaro de bico azul. No desejo de conhecer outras coisas, outros seres, sem nunca desistir de ser livre.
Uma boa semana.
Um grande beijo.

Ulisses de Carvalho disse...

Nada é, tudo está: existir é transmutar (para os pássaros também).

As imagens são lindas. Um abraço.

Agostinho disse...

.. rra, uma gaivota lixou-me o comentário. Rebobinando. Não era bem isto, mas...
Dizia eu que era fundamental a ilusão na vida. A fantasia tem muita força e razão, de tal forma que dentro do embrulho vêm coisas de verdade.
A parvalhona, armada ao carapau, mandou ir o bico azul comprar 5 tostões de semente d'arame, a mangar dele. Quem ganhou quem perdeu? A fanfarrona ou a fantasia azul? Não tenho dúvidas.
Gostei muito, Manuela.
Beijo.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...


que delícia, e inspirada no advento.
gostei muito da estória e dos pássaros.
beijinhos

:)

mz disse...

A inocência no meio da arrogância - é assim também que muitos seres humanos conhecem a crueldade dos grupos em sociedade.

Conto maravilhoso com aquela magia que só a Manuela nos oferece.
Obrigada.