E por fim ri-se. Num gesto ainda bonito, atira para
trás os cabelos pretos azeviche, lustrosos como veludo, pega no saco e desce
as escadas a correr. Eu aceno-lhe e penso como duas pessoas tão
diferentes conseguem ser iguais. Às vezes estamos mais de um ano sem nos
vermos e a conversa é reatada no ponto em que ficou e rapidamente unimos os
pontos separados e os outros que pintamos por aí. Fazem uma linha.
Lembras-te daquela casa com um portal, duas
colunas, a varanda toda à volta e os espanta espíritos que afinal não
espantavam nada e até atraiam os morcegos. Lembro-me. Da cozinha negra de
carvão, as vasilhas de cobre, o poço. Também. Dos macacos zangados a arrancar
telhas, da chuva forte, dir-se-ia eterna, do cheiro da terra. E do rio ao fim
do dia. Sim. Divertimo-nos como loucas. Pois foi. Quem diria este tempo
desapiedado que estamos a viver agora.
O vendedor de açafrão tem duas filhas esguias como
juncos, os cabelos presos numa trança. Um dia rolou um grão de mostarda pelo colo
de uma e um grão de pimenta pelo colo da outra. O pai zangado ordenou-lhes,
procurem os grãos perdidos, pois um não é nada sem o outro e é com eles que eu encho
os sacos para levar ao mercado e compro o arroz que cozinhamos à ceia.
As filhas esguias como juncos e sensíveis como asas de
borboleta, desfizeram as tranças e soltaram os cabelos e as lágrimas, e estas
eram grãos de água transparente. Procuraram debaixo da mesa, nas gavetas, nas
traves do teto, na rua, no mercado, no templo, entre a areia da praia. E as
filhas, frágeis como a
lua nova, cansadas, adormeceram.
Desço com ela e apanhamos jarros, margaridas e uma
braçada de hortelã. Na cidade as flores estão-lhe distantes e há pouco espaço em
redor das casas.
Os jarros não gostam que se lhes corte o pé. Vingam-se
largando um líquido castanho que põe nódoas na roupa. Assim nunca mais nos
esquecemos.
Foi então que dos sonhos das filhas do vendedor de
açafrão surgiu uma ave rara e abriu a sua enorme cauda, estendeu o bico e
largou na almofada do pai dois grãos, um de mostarda e outro de pimenta.
Depois pegou nas raparigas esguias como juncos e levou-as
para um reino distante.
16 comentários:
MANUELA BAPTISTA
Mão esquerda e mão direita a tocarem magistralmente como Gould!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 10 de Maio de 2013
Estar aqui e ler estas linhas é um tempo maravilhoso em que se perde o contar das horas e se multiplicam os sonhos açucarados.
Desejo um bom Fim de Semana
É um tempo mágico, este que se perde aqui.
Beijinhos
.
.
. rara é a ave rara . que precede um final feliz . e que procede . levando o sangue (nosso) mais longe .
.
. do açafrão . fica.nos o estímulo do Sol sobre um campo verdejante .
.
. da pimenta e da mostarda . o pôr.do.Sol e o entardecer .
.
.
. (onde mora o especieiro?) .
.
.
. íssimo . sempre feliz .
.
.
Kriu?
Especiarias? Prefiro snacks da Versele-Laga, ou, no mínimo, tónicos especiais!
Lindas as tuas janelas e portadas!
Sabes como sou completa e tontamente elouquecida pelos teus lilases...
Kriu!
A continuares a escrever assim, ainda vais ganhar o prémio "Egas Moniz da Literatura" promovido pela junta de freguesia da tua área de residência!
Parabéns, Marinela Baptista!
O transporte das aves é sempre igual ao húmus das flores...
Obrigado por este espaço seu...
esguias como juncos...
eu tb já fui assim, só que ninguém me roubou.
que texto!
bom fim de semana.
beijo
É mesmo assim. Duas pessoas tão diferentes podem ser tão iguais, por mais que discordem em quase tudo nesta vida. São iguais na essência, que não é pequena....Eu que o diga!
Beijos e um lindo domingo, Manuela!
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
conforme lia suas linhas ia voltando no tempo e espaço e marcando o passo de menina pelas laterais de uma casa verde, com pesadas janelas, jardins de rosa e portas emperradas. Um cheiro de barro crescia do forro sem laje e a cozinha azul, a sala cor de mostarda onde ficava o velho carrilhão a cantar as horas. O quarto com assoalho a ranger os passos e a gente a crescer sem se dar conta, se despedindo de qualquer coisa para ser adulto no dia seguinte.
Grazie carissima por essa viagem...
bacio
Desde o início que estou a espirar,é a pimenta do reino que adoro no tempero mas que me pôe neste estado.
Atchim!
E por fim também estou rindo,
por me teres feito esquecer deste tempo desapiedado que estamos a viver agora.
Um abraço,
Mz
Sim, creio que a amizade pode ser um grão de mostarda e um de pimenta, um que não vive sem o outro...
Beijo, uma boa semana
Isa Lisboa
=> Instantâneos a preto e branco
=> Os dias em que olho o Mundo
=> Pense fora da caixa
Olá, Manuela!
Reino distante, de frutos exóticos, é este que aqui fica; povoado por seres encantados e encantadores, onde a par do encantamento também existe este mudo que cada vez mais nos desencanta...
Lindo!
Abraço amigo e boa semana.
Vitor
Nos sonhos, personagens camaradas, cúmplices do encantamento...
Tão mágico e belo...tudo!
Beijinhos, Mauela,
da Lúcia
Ai, estes cheiros do oriente...inesquecíveis, temperam a comida, a alma e a vida!
Uma história de encantar e de amizades que nunca se esquecem...
E os desenhos? A casa com um portal e varanda a toda a volta com um espanta pássaros...que não espantava nada... O que me espanta a mim, é a tua prodigiosa imaginação e a mão certinha para pintar uma ave rara, tão rara como esta que enche a tua página de fantasia.
Beijocas
Graça
Adoro ler-te.
Porque tenho a certeza que encontro a excelência de sempre nas tuas palavras.
Os teu desenhos são sempre belos.
Querida amiga Manuela, tem um bom fim-de-semana.
Beijo.
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