Levanta-se antes do nascer do sol, coloca a chaleira ao lume
e prepara o chá. Come uma taça de arroz que tenha sobrado da véspera, toma banho,
arruma a casa e veste-se. Sobre o ombro esquerdo os anilados, sobre o direito,
os tecidos cor da terra. Num saco de pano carrega todos os outros que sobram.
Quando chega às aldeias escolhe um lugar à sombra e sobre uma esteira estende
os tecidos e espera que lhos comprem. Não apregoa, não chama as mulheres, tão
pouco os homens. Ele pensa que a melhor forma de levar as pessoas a desejar um
pano, é valorizá-lo, dando-lhe espaço e luz, colocando lado a lado a cor que
combina, volteando-o, pregueando-o. Quando no olhar de alguém vê refletida a
sua imagem, ele percebe que o está prestes a vender. O preço é variável, pode
valer duas moedas, um pão, um saco de farinha, uma frigideira, uma lâmpada, um
livro. Se não possuem nada, ele desafia-as estendendo-lhes um lápis e duas
folhas de papel, escrevam-me uma carta, para que eu não me esqueça de vós.
Muitos chamam-lhe estranho, solitário, desconcertante,
uns gostam dele, outros não.
Regressa a casa quando o sol se põe, pousa os tecidos,
acende o lume e senta-se na soleira da porta a ler as cartas que lhe escreveram.
Depois guarda-as numa capa forrada de papel de arroz onde desenhou um lírio.
Em tempos de fartura, vende todos os seus tecidos,
conserta o telhado, compra uma manta nova para a cama e paga os impostos. Nos
tempos de míngua, gasta as solas das sandálias, crescem-lhe bolhas nos dedos
dos pés, a capa de papel de arroz incha, repleta de cartas. Atravessa as
aldeias e vai cada vez mais longe, as pernas a tremer de cansaço, um desânimo a
picar-lhe na garganta. Foi num desses dias que ela apareceu, tímida, calada,
quase invisível para que não dessem por ela. Colou os olhos a um tecido azul
marinho e se por um acaso ele estivesse atento, veria as ondas e os peixes e
talvez um cavalo marinho a deslizar. Ele abriu o tecido, balançou-o, ela
aproximou-se, tocou-o levemente com as costas da mão e pegando numa ponta,
prendeu-o à túnica branca quase transparente que trazia vestida. Do bolso da
túnica apareceram duas orelhas e uns olhos pequenos a espreitar.
-Este é o Loris - disse a rapariga. Roubei-o aos vendedores de
espécies raras porque o maltratavam.
O mercador de tecidos soltou uma gargalhada e o bicho
escondeu-se. A rapariga também se riu e sentando-se no chão junto da esteira,
cruzou as pernas, pegou no animal com todo o cuidado e entregou-lho. Devagar,
muito devagar, Loris subiu-lhe por um braço agarrando-se nas suas quatro patas,
os olhos a fixar tudo em redor, atento, calmo. Quando chegou ao cabelo parou.
- Gosta de ti - disse a rapariga.
O homem tirou do saco uma faca e uma maçã vermelha,
partiu-a em pedaços e dividiu-a com a rapariga e com Loris, que comeu devagar.
Do tecido azul marinho saiu um enorme peixe-voador e foi pousar
na árvore mais alta.
18 comentários:
Um final inesperado numa história de amor e de luta.
Todos os dias com o nascer do SOL começa a vida e por amor luta-se para vencer.
Pensei, a meio da leitura, que estando em tempos de mingua seria altura de eu investir parte das minhas economias comprando-lhe a venda. Não para me servir da sua necessidade mas para lhe resolver dores conhecidas... depois de lido percebi que seria um gesto inútil e estúpido para além de quebrar a magia desse encontro e a de um peixe que, podendo voar, sabe escolher o ramo onde pousar...
MANUELA BAPTISTA
Deixa-me fazer uma festinha ao Loris, deixas!?
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 18 de Maio de 2013
Mais um belíssimo conto (?)/poema (!). É bem saber que Portugal poderá guardar, para o seu futuro, que teve bons escritores, no início do séc. XXI
Eu também gostava de fazer uma festa
ao Loris...
Eu também gostava de saber escrever
como a Manuela...
Eu também gostava de ter a sua
enorme capacidade de "criar"
histórias...
Mas não o sabendo...tive a imensa
sorte de ter encontrado o seu blogue
e vir aqui, "absorver os seus textos
e desejos" perante os quais fico
extasiada, confesso, às vezes alguma dificuldade de os entender
à primeira ou à segunda...(limitação, obviamente minha) mas
é muito bom vir aqui.
Bom fim de semana.
Beijinhos
Irene Alves
Olá, Manuela!
Por esta tenda encantada é um prazer passar, e sempre bem ganho o tempo - ainda que nada se encontre à venda...
Bonito,como sempre.
Bom fim de semana, com um abraço.
Vitor
Lindo
Belo lugar para se estar este seu blog !
Abraços, bons caminhos...
um fim que não esperava, mas que resultou lindamente.
mas fiquei emocionada...:(
uma boa semana.
um beijo
:)
Sempre contos transparentes :-)
Não adianta tentar vender nada se o artigo não prestar. Incluindo a imagem que queremos vender aos outros...
Um excelente conto. Ao teu melhor nível.
Querida amiga Manuela, tem uma boa semana.
Beijo.
Muitos comerciantes teriam que aprender e muito, no modo subtil e quase de desinteresse que ele vendia os seus tecidos, conjugando as cores, como se pintasse um arco-íris... No final do dia a partilha de uma maçã que, com generosidade, saciou aos três e ganhou a simpatia de Loris.
Muitas lições se tiram das histórias maravilhosas que escreves...
Beijo de sol
Graça
Fiquei com vontade de comprar um desses tecidos e de ainda escrever uma carta ao mercador...
Sempre tão envolventes os seus contos, Manuela, gosto sempre de aqui vir!
Beijo
Isa Lisboa
=> Instantâneos a preto e branco
=> Os dias em que olho o Mundo
=> Pense fora da caixa
Kriu?
Loris, na minha terra, é uma ave, e por acaso da mesma família do que eu!
Kriu!
"Loris o vagaroso" contrastaria muito bem com "Branquela a corredia viscosa", a qual, apesar de cronicamente obesa, faz maratonas de blogue em blogue...
.
.
. entre.tempos de tudo e de nada .
.
. um conto terno .
.
. que relata o dia.a.dia dele . o surgimento dela . e a salvação do Loris .
.
"A grandeza de um país e seu progresso podem ser medidos pela maneira como trata os seus animais."
(Mahatma Gandhi)
.
. íssimo feliz .
.
.
A partilha.
Cartas escritas quando nao se tem mais nada e depois das coisas vulgares dacondiçao humana em sociedade, a partilha da amizade.
Muito bonito e sempre aquela magia especial, Manuela.
E agora,para fazer companhia ao peixe, um abraço voador!
Bjs,
Mz
Ah! as suas deliciosas e fantásticas histórias que tanto me encantam!
Vou subir, nessa onda...ver o peixe saudoso e mais...
Beijos, Manuela
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