Não foi difícil fechar-se na concha. Encolheu um pé, o
outro cresceu, o ventre deslizou sobre a rocha. À tona de água as gaivotas
guincharam risos de troça mas o homem-búzio fez burriés de mercador e disse,
esta é a minha casa. Levou algumas horas a adaptar os olhos ao sal da água,
piscou, pestanejou, fechou e abriu as pálpebras. À tardinha era o sol laranja a
espelhar azul quando chegou o barco. Pequeno como as pulgas-do-mar, casco
acastanhado e a vela recolhida por falta de vento.
O homem-barco gostava de abismos e de tempestades,
mareava na calmaria, bocejava em mar chão. E ficou ali parado e deitando a mão
à água apanhou o búzio, olhou-o, revirou-o e perguntou, está aí alguém? Estou
eu, respondeu o homem-búzio - e mergulha-me se fazes favor, porque a ausência
de impulsão faz-me doer as costas. O homem-barco deitou-se de bruços e atirou o
búzio à água. Ficaram os dois a olhar um para o outro e a noite chegou e
levantou-se uma brisa e o búzio deixou escapar uma enorme bolha de ar e disse,
perdão.
Então o homem-barco soltou o velame azul-marinho e
dir-se-ia azul-escuro na noite ainda sem estrelas. Os panos estalaram um ruído
seco e compassado e largaram rumo ao mar alto. As ondas faziam subir a proa e
logo baixava quase a afundar. Os olhos do homem brilhavam como dois faróis, o
coração era o leme e os braços os remos. À ré, desfiava o que o atormentava e as
partículas de dor pousavam e prateavam a marca de água como se fora rede de
emalhar.
Os búzios da maré vaza ecoaram a rota do homem-barco e
esperaram por ele nos recifes de coral onde a água é rasa e os peixes-frade
nadam aos pares a rezar as matinas pela madrugada.
O homem-barco ancorou os pés na areia e enrolou ao pescoço uma alga marinha. Um instante apenas para descansar.
21 comentários:
Muito bonita esta história, como todas as suas...Comento pouco, mas leio-a muitas vezes.
Um abraço do Tio Buzio ;-)
.
.
. nos dias . porque estes são os dias . ao serem estes os dias . em que sobre.vivemos entre.abismos.e.tempestades . gostar . é saber estar aqui . ao saber.me a descansar .
.
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. neste marear que me é a vida toda . a vida inteira . toda ela e ela toda . o e no infinito . que não mais cederei . por ter sabido . ao ter tido a sorte . de o ter sabido encontrar .
. assim . entre.os.dedos . de quem sabe Ser . ao fazer.me feliz .
.
. bravo . bravíssimo .
.
. íssimo feliz .
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Kriu?
Eu também sei fazer burriés que me servem de marcadores, para saber exatamente onde encontrar, a pontita do teu nariz!
Kriu!
Já passei por isso...
Houve um dia, em que sem querer, deixei escapar, uma enorme bolha de ar e disse, ão, ão... apesar do pivete!
É da brita, disseste tu!
E ganimos os dois...
Que pena eu ter tido, para enfeitar
um jardim e não o mar
Entre o mar e o jardim
há em comum uma gaivota
que ainda ficou por mostrar
Ficá-mo-nos pelos pássaros
Mas... homem-barco, homem-búzio, peixe-frade.. são personagens queridos
para um "mar-do-nunca"...
MANUELA BAPTISTA
Burriés à parte, arrotei a seco e fiquei sem ar ...
Mas lá conseguiste meter na história o peixe frade, essa é que é essa!
De vento em poupa ... e cachecol ao peito, bravo!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 1 de Junho de 2013
Tão bonito!
Bjs
Homem-búzio... Por vezes, não desejamos todos ser um...?
Nem precisaria desta linda música para me sentir embalada, tão bonitas que são sempre as suas histórias...! :)
beijo, bom fim de semana!
Isa Lisboa
=> Instantâneos a preto e branco
=> Os dias em que olho o Mundo
=> Pense fora da caixa
Brilhante, como sempre.
Nas palavras e nos desenhos.
Querida amiga Manuela, tem um bom domingo e uma boa semana.
Beijo.
O homem barco, o homem búzio, e esse mar cheio de histórias.... Vou a Portugal em fins de junho ver também peixe búzio assim de perto.....será??
Beijinho Manuela
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
Eu entendo o homem búzio, por vezes levamos tempo a adaptarmo-nos, mas chegamos lá.
Muita imaginação e como sempre, um conto fantástico.
Um abraço Manuela.
"O azul escuro da noite, ainda sem estrelas",
a evocar a lua nova de todos os segredos, ó, mistério do ciclo, em que acreditamos permanentemente retornar, na sinuosa linha que é a nossa marcha para o Começo
muito interessantes e sempre cheias de imaginação.
as imagens , muito belas.
uma boa semana.
um beijo
:)
Olá, Manuela!
Do "muito" que naveguei, nunca eu encontrei mareantes assim, nem este mar encantado.Certamente terão eles habitado a Atlântida, antes desta se ter afundado...
Adorei navegar nesta linda história!
Boa semana; um abraço
Vitor
Suas histórias, como que, "refrescam" a minha memória. Leia isto:
"Há muito tempo, eu não tenho onde morar.
Se é chuva, apanho chuva, se é sol apanho sol.
Francamente, pra viver nessa agonia,
eu preferia ter nascido caracol"
Marcha de carnaval carioca, dos anos 1950 que me lembrei, neste mar de beleza que aqui encontro...
Beijinhos, boa semana
Mais uma excelente viagem que partilhou
Grato por este momento
Gostaria de partilhar contigo a minha postagem extraordinária (a regular é publicada ao dia 14 de cada mês) que publiquei hoje, dia 06/06, no meu blog A CASA DA MARIQUINHAS
Desde já o meu bem hajas!
PS - Desculpa o "copy & paste"
Maravilhoso como sempre. Adorei. Beijos com carinho
Como me delicio com o que escreve! Agradeço os seus textos.
então e o homem-gato...?
Estou adorando ler-te ao som dessa bela canção. Sinto-me em casa, diante de um daqueles livros de mitos e lendas a ver o mundo como outros tons e aromas. Muita gentileza sua nos brindar com essa magia sem igual. bacio
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