Nesse dia ao sair de casa o rapaz percebeu que a rua não
era a mesma. Ficou uns minutos parado, as mãos nos bolsos, os olhos
entreabertos, os ouvidos à escuta. Sentiu no ar um cheiro a sementes de sésamo queimadas
e não havia vento. Não reconheceu mais nada.
Lembrou-se que aquele ano não tinha começado exatamente
como os outros. O pai resmungou, estou desiludido. A mãe pegou na mochila do
irmão mais velho, meteu-a na máquina da roupa no programa da água quente para
tirar as nódoas, a mochila encolheu. A mãe disse, não faz mal tu também és mais
pequeno, e coseu etiquetas a tapar os buracos. Ele pensou, vão gozar comigo, mas
não ligou muito a esse facto, e agora que via a professora de português por
quem ele estava apaixonado desde o 5º ano, cada vez mais distante, ainda menos.
A turma tinha tantos alunos, que no exato momento em que os professores
terminavam a chamada, a campainha tocava para o intervalo. Deste modo,
aprendiam no recreio uns com os outros e com a matula do bairro XZY que entrava
pelos buracos que já não tinham rede. Os Bairros em Processo de Exclusão Instalada
eram tantos, a quem ninguém vivo e muito menos morto desejava ver o seu nome
associado. Daí a combinação das letras do alfabeto. Claro que a designação
atribuída a estes bairros era perfeitamente ridícula e contraditória, pois um
processo significa um projeto, um trajeto, e instalada, significa que já não há
volta a dar, acomodada.
Mas ele não era bom aluno. Recusava-se a escrever nas
paredes e a roubar bicicletas. Era um rapaz estranho, parecia estar sempre
distraído, ausente, do outro lado das coisas. No entanto entendia a geometria
das casas e das ruas, salvava os gatos assustados no alto das árvores, tratava das
feridas aos cães vadios, plantava junquilhos nos buracos da calçada. De manhã
quando saía para a escola com o seu fato de marinheiro antiquado, todos lhe
diziam bom dia e ele guardava no bolso azul turquesa os recados que tinha que
fazer à mãe.
Foi então que apareceu a correr, o pássaro. As patas bem
firmes, as pernas longuíssimas, as penas no alto da cabeça a esvoaçar e
gritava, não fiques aí parado, não vês tanto desolhar? vem comigo. E assim
correram os dois durante vinte e cinco minutos, o rapaz cansado pensou que
andava a exagerar nas bolachas e o pássaro a deitar alpista pela boca.
Meia Lua chama-se o rapaz e encontrou o pássaro das
histórias.
Desolhar é a terra do povo do outro lado das vozes.
as vozes de Fernando Pedrosa
técnica mista s/ tela
24 comentários:
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. um pássaro . vascular . ásaro .
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. e em cada vaso . um indivíduo .
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. divido . e sulco .
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. e em cada ruga o desolhar .
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. e em cada olhar todas as vozes .
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. também a minha . e também a tua .
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. e em cada linha . o Meia Lua .
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"técnica mista s/ tela"
Pintaram a meias? ambos os dois? e havia luar? no quarto crescente ou no quarto minguante?
Ou pintaram na sala?
Claro que sem a tela, porque a televisão provoca distracção!
Os pássaros não correm! Voam! Como as gaivotas e cruzam os mares que os habitam e encontram-se todos por aí, em todos os lugares, onde haja um sonho para engolir e a esperança para os juntar!
Por isso me apaixonei...
E eu é que sou gata fedorenta,
técnica mista, Téré:
acrílico
lápis de cor
de cera
gelado de chocolate
pastel
carvão
queijo da serra
cola
papel de jornal
aquarela
Miau!
KI.TI
Gelado de chocolate não, esse, de tão guloso e à distância, tenho dotes que mal suspeitarias, surripiei-te eu!
E não te ter roubado o queijo da serra, sorte a tua!!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 6 de Outubro de 2012
MANUELA BAPTISTA
Vá, continua!
Fernando, belíssimo
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 6 de Outubro de 2012
foto e tela!
o texto como sempre.
genial.
um bom fim de semana.
beij
«O pai resmungou... a mochila encolheu...» e o Meia Lua, sem culpa nenhuma, vai ter que "usar" a mochila esburacada do irmão mais velho... :(
Maravilhoso como sempre!!! Li e reli!
Belíssimas também as imagens da "técnica mista"
Adorei, Manuela!
Beijinhos e Bfs
brancas, negras, azuis, vermelhas, verdes, douradas...
as mil e uma vozes de Manuela Baptista!
tanta pérola a soltar-se da sua língua... vá, corra mais um bocadinho! :)
um beijo
nandinho
Nem sempre passo, mas recordo e sei que sempre amarei os seus textos.
Sei onde envontrá-los e por isso sempre voltarei.
Beijo
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. há.domingos de tanto e de tanto.espanto .
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. e.por.que . de uma ave se.trata .
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. está linda . tal.e.qual .
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. uma fotografia . perfeita .
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. o mesmo.dom . o mesmo.tom .
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. até aquele olhar . malvado .
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. :))) . obrigadoooooooooooo .
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. muito .
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Lindo este pássaro das histórias...
Beijo de final de domingo
filomena
Telas mistas (adoraria possuí-las)
assim virei sempre aqui olhar para
elas.O texto diz imenso(como sempre)
inteligentemente escrito.
Um grande beijinho
Irene Alves
Vejo-me criança, revisitando a amazônia com o meu sacy pererê, mãe d'água, curupira...o fantástico mundo que eu então habitava...Imagens e personagens, aqui, como lá, me fascinam...é encantamento...
Rica semana...nas criações...
Beijinhos
Um texto que diz mundo e que toca na alma, como sempre.
bjs
De facto já estivémos mais longe de "no exato momento em que os professores terminavam a chamada, a campainha tocava para o intervalo. "... Tenho amigos que nem a chamada poderão fazer este ano...
Para além desta imagem mais real que me assaltou, gostei imenso de conhecer o Meia Lua (ou será ele na realidade mais real que tudo?). Pinturas fortes também, gostei muito das cores, dão uma vida enorme e intensa a Meia Lua...!
Beijos
Uma ternura de texto
projectado
numa bela constelação de cores
Há demasiadas coisas tão más instaladas... mas acho que há volta a dar... o desolhar ainda pode fazer das suas...
Um abraço, Manuela.
e se o chamado fosse outro nome
e a professora fosse a de matemática
e a corrida fosse de trinta minutos
diria
que tinhas escrito a minha biografia
(desolhar é qualquer terra, deste mundo)
Na realidade, as turmas vão ter tantos alunos que na volta, irão todos acompanhar correndo ao lado do teu pássaro.
Vamos aguardar...
Um abraço!
Querida amiga
O texto maravilhoso, bela lição, do bem.
As telas foram pintadas para o texto ou o texto foi feito para as telas?
LINDÍSSIMAS
Com muito carinho e alegria agradeço aos dois, bjs.
Rufina
a pintura já existia há muito e foi-me cedida pelo Fernando Pedrosa
eu invento o conto à medida que leio as personagens desenhadas
espero não ficar aquém
beijinhos
Querida amiga,
Meu silencio tem sido longo.
Mas não tem sido por esquecimento, mas sim por conta dos acontecimentos do dia a dia.
Quero muito agradecer a sua presença amiga lá no meu cantinho, a qual trás muita alegria para o meu coração.
Que Deus a abençoe, e realize todos os seus sonhos e projetos.
Uma linda semana para você coberta de muita paz e Amor!
Abraço Amigo
Maria Alice
Querida Manuela
Quando o Meia Lua for Lua Cheia..irá voar com o pássaro das histórias e correr o mundo todo...Se passar por aqui, eu irei com eles!
Desenhos maravilhosos numa história de encantar...
Beijo
Graça
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