a dormição dos peixes





A luz a escorregar pelas vidraças, o cheiro a sargaço, o sal nos lábios. Semelhantes são as casas da praia, duas portas, uma cozinha, sete quartos, um sótão, um estendal balançado de toalhas azuis. Marinho, ultramarino, turquesa, cobalto, celeste. Uma torneira que se abre ao máximo e a mangueira enrolada distende-se, cresce como uma cobra encapelada, gritos de alegria, um arco-íris atravessa a água, este instante atravessa a vida.
No limite, será essa a travessia. Descalços, nus, não necessitamos de mais nada.
Afastamento. Há uma hesitação antes da partida, um medo vago do desconhecido, uma escama de peixe presa na garganta.
Depois abandonamo-nos e em cada desvio o sol é quente e acastanha a pele e o fundo da água uma camada fina de areia como um deserto molhado.
As luas serão duas no céu de agosto.
Aproximação. Os peixes não dormem. Alternam estados de vigília e de repouso, os olhos sempre abertos e eles imóveis, disfarçados, desconhecidos.
Quem regressa encontra o equilíbrio das barbatanas peitorais, desaproxima-se da eternidade dos verões, do tempo que julgamos compreender e que intuímos apenas.




Sabemos tão pouco sobre as guelras e os pulmões.
Um dia guardei uma história antiga na barriga de um peixe. Primeiro abri-o com uma faca afiada, aquietei-o com uma litania de estrelas, ouriços, búzios do mar. Acomodei as palavras, urdi a trama nas frágeis cartilagens, disse-lhe, não tenhas medo.
Depois cosi-lhe as entranhas com uma linha de seda bem fechado o peixe, avaro o que protege. Amarou então. E eu marquei na memória a sua forma, a sua cor, o jeito acrobático das mudanças de corrente, o rodopiar excêntrico. Não sei para quê. Os peixes multiplicam-se, assemelham-se, confundem os humanos. Este é especial pelo que esconde, não pelo que demonstra.
Reconhecimento. Será ele a reconhecer-me e eu não.
Outro dia. 




agradeço a Mark Laita a inspiração para alguns dos habitantes do mar de agosto









19 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Depois de tantos oceanos
Te reencontro
Reconheci-te
neste Agosto de duas luas
entre as palavras tuas

. intemporal . disse...

.

.

. in.desérticas as palavras amadurecentes .

.

.

. e as histórias são agora de guelras com areia ao fundo .

.

. a plenos pulmões .

.

.

. seja . bem.regressada . encantadora.de.palavras .

.

. íssimo . feliz .

.

.

CamilaSB disse...

Magnífica esta « dormição dos peixes » um arco-íris de palavras poéticas - que encanta a alma de quem as lê... sublime!
Um grande beijinho, Manuela! Bfs

Anónimo disse...

São de água salgada? Podias pintar o nemo... e um carrocel com cavalinhos antigos, azuis bébé e creme e café...

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Bem me queria parecer que destes peixes se desenhava o esquema de uma bela história!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 1 de Setembro de 2012

Unknown disse...

em Setembro chega o que de melhor Agosto amanhou!

assim... a gosto, Setembro abre as guelras para gritar (de novo)o parto da imaginação

Manuela, bem regressada seja,
para me encher a barriguinha de histórias...:)

Agosto foi cá um jejuar!:))

beijo

Nandinho

Anónimo disse...

Que lindo, para começar setembro!


Beijo primeiro



Filomena

Isa Lisboa disse...

Lindo...sempre! :)

Beijos

mz disse...

E fica Agosto imóvel e vigilante até que outro Agosto se aproxime tal qual o peixe em repouso.

Já estava com saudades das tuas histórias mágicas.

Um abraço.

Rita Freitas disse...

Tão bonito!

Beijinhos

Daniel C.da Silva disse...

Belo. Belíssimo!
Guardo os peixes na memória dos búzios.

beijo amigo

Graça Pereira disse...

Sabe-me bem o teu regresso!
Ao ler o título "dormição" lembrei-me logo de Mia Couto que, como tu, constrói palavras e histórias. Esta, cheia de encanto...quem sabe se um dia não encontrarei o peixe que trás nas suas entranhas tantas palavras...talvez ambicionadas pelos pescadores de pérolas!
Um beijo carinhoso
Graça

Menina no Sotão disse...

Eu fui lendo me reconhecendo entre as tuas palavras. É sempre assimm. Uma sala com retratos por cima dos móveis. Uma parede com quadros coloridos. Uma cozinha com ingredientes para o jantar. Um quarto com sonhos ainda por serem sonhados e suas palavras fazendo eco em meio aos meus caminhos...
Saudades daqui.
Pelo que vejo agosto foi de duas luas e muitas inspirações. Muito bom.

bacio

Linda Simões disse...

Manuela,

Amiga,já é setembro e eu venho aqui para abraçar os amigos.
Teus contos são mesmo um carinho em nossos corações...

Saudades,

Linda Simões

Anónimo disse...

Mais uma visitinha de quem anda um pouco longe, mas vai voltando, como se fosse a Roma, sabendo que por aqui sempre há um cantinho de lições interessantes para aprender.

Será difícil voltar por estes dias, com assuntos deveras lmportantes para tratar, mas vou lendo e escrevendo sempre que possa.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

já vi a fonte de inspiração.

e que bem inspirada regressas de férias1

um texto que quase se sente o cheiro do mar e onde as tuas palavras ganham vida e luz.

gostei muito, como sempre.

um bom fim de semana e um

beij

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Sentí-me banhada de marisia, apreciando a dormição...

Beijo

Evanir disse...

Uma das grandes bênções da vida
é a experiência que os anos vividos nos concebem.
Aniversariar é uma amostra das oportunidades que temos de aprender a contar os nossos dias.
mais uma janela e abre diante dos meus olhos,
mais um espinho foi retirado da flor,
restando somente a beleza de tão bela data.
Com fé, na esperança e no empenho por ser melhor a cada dia.
Seguindo pelos caminhos da verdade e do amor.
Um dia encontrarei o mais belo jardim, o jardim que representará a realização
dos meus maiores sonhos.
Com saudades .
desejo um feliz final de semana
venha curtir meu aniversário.
Beijos na sua Alma,Evanir.

Nilson Barcelli disse...

Gosto de histórias com peixes.
Mas dentro deles nunca tinha lido...
A tua escrita é fabulosa. E os desenhos também.
Beijo, querida amiga.