Estava sozinha na paragem do autocarro. À sua frente, uma
folha de papel de jornal abandonada ao vento da manhã ainda noite. Subia,
girava, dobrava-se, revolteava, as letras pretas pareciam escorregar mas
agarravam-se ao fio das notícias, à paginação definida e ela a olhar. Uma
rajada mais forte fê-la subir até aos ramos mais baixos dos plátanos, os
pássaros nos ninhos não sabiam ler e a folha fez um som seco de madeira de
barco quando o sol lhe bate, mas chuviscava ali. Folha com folha, a de jornal e
a de plátano e a rapariga sentada. Sobre os joelhos um saco de lona, a saia
curta, os ténis, o desalinho da idade. Junto ao pescoço a blusa antiquada, os
botões a fechar casas, uma timidez de outro século. Era uma rapariga em duas,
mas isso não significava nada ali na paragem de autocarro. Os minutos passavam,
a chuva engrossou, a folha de jornal deixara de dançar e quando o autocarro se
aproximou a rapariga levantou-se devagar, estendeu o braço, dobrou ligeiramente
o pé direito e a saia rodou.
O destino poderá ser a praça da alegria, os prazeres, os mártires, a estrela, a graça, o coração de jesus, as necessidades, a
rua do ouro, o alto dos moinhos. De antemão não se sabe. Ela fechou os olhos e
o motorista gritou - Em direção à lapa! Era o destino certo nesse dia, a lapa
onde gostava de se esconder, invisível, transparente, à procura das gotas de
água, dos cogumelos venenosos, das rãs.
Então? disse o homem – despacha-te, não temos o dia todo
- e arrancou ruidosamente.
Na segunda paragem entrou um coelho preto e branco com
uma papoila ao peito, na terceira, um gato branco e preto sem papoila. A
rapariga viajava junto à janela e ia contando os candeeiros de rua que tinham
as lâmpadas fundidas àquela hora da manhã. Contou dezasseis e na vigésima
paragem entrou um homem com uma cartola preta e veio sentar-se a seu lado.
Vestia umas calças de ganga e uma camisola de algodão, tinha um sorriso largo,
o nariz perfeito e a cartola destoava. Não parecia dele. A rapariga olhou-o desconfiada
e o homem disse-lhe, dormem pássaros no meu chapéu. Ela riu-se e acreditou.
Na última paragem antes de chegarem ao destino a rapariga
puxou-lhe a manga da camisola e disse-lhe baixinho, eu não durmo.
conto da rapariga que cantava para adormecer
pastel sobre negro de algodão
25 comentários:
MANUELA BAPTISTA
Que mais notícias se seguirão nesta folha de fundo negro e de letras brancas que, sempre vertiginosas, a ela se agarrando, escorregam e rodopiam por aqui ...!?
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 18 de Maio de 2012
Olá, Manuela!
O mundo do absurdo levado ao requinte, percorrido a bordo dum autocarro na companhia duma fauna estranha,e a caminho dum improvável destino:a fina Lapa...A subversão não podia ser mais completa!
Abraço amigo; bom fim de semana
Vitor
Excelente conto, como sempre.
Manuela, querida amiga, tem um bom fim de semana.
Beijo.
curta ou longa, e tenha o destino que tiver, esta é uma viagem a não perder - entrar nas palavras, viajar dentro delas, misturar pensamentos e sonhos, espreitar o que tem dentro a palavra fantasia, envolver-se com ela, e, por fim, perceber, que ali não viaja a palavra monotonia e também não faz falta nenhuma
impagável, esta viagem de autocarro, Manuela!:)
um beijo
nandinho
É sempre bom viajar
e encontrar tantas coisas no caminho...
Beijinho de saudade
Linda Simões
Um texto brilhante como já nos habituaste. Tenho-te lido no Paulo...e aqui, mais ua vez...o talento em forma de "linhas vestidas de palavras": não sei se estou a "plagiar" alguém, mas esse gostaria que fosse o título de um livro que eu escrevesse...se algum dia tiver coragem de publicar algum. Parabéns...
Um privilégio ler-te. BShell
.
.
. Era uma rapariga em duas . por.que o destino poderá ser . ainda . todos e quais.quer lugares dos quais nos re.lembramos sob a sombra da cartola preta . que embora nos des.toe .
.
. permite.nos voar .
.
. ar . ar .
.
. ar .
.
.
. íssimo . sempre feliz .
.
.
Auf!
Se em vinte paragens contou dezasseis, então a luz já é mesmo chinesa...
Auf!
Béu, béu
A blusa antiquada não disfarça o piercing no nariz...
Béu, béu
eu sabia...que o nariz não estava lá muito bem desenhado :)
Pois há muitas raparigas em duas
e andar de autocarro em Lisboa
tudo pode acontecer.
Maravilhosamente escrito.
Inventivo.
Beijinho
Irene
Prende esse olhar em pastel da rapariga que cantava para adormecer...
O conto, espero a segunda parte, depois das interessantes personagens que a paragem me mostrou!
Boa semana!Beijos
Li, consegui, mas quero muito reler.
Esta é a Manuela que tanto admiro.
Beijinhos
Ná
Querida amiga
Lindo conto, viajei de autocarro junto com a rapariga, ela era livre e sabe exatamente o que fazer.
OBRIGADA sinta-se abraçada.
Abraços=troca de energia
Com alegria e carinho BJS.
Linda semana.
Manuela,
Corro o risco de me repetir, mas a sua escrita encanta, seduz e, em simultâneo, tem o sabor cada vez mais raro das coisas naturais.
Um eterno obrigado.
beijo :)
Sua imaginação nos faz ir além, abraço Lisette.
Manuela
Não ando de autocarro mas, se me garantissem que viajaria com um coelho preto e branco com uma papoila ao peito, um gato preto e branco sem papoila e uma homem com uma cartola preta onde dormiam pássaros... de certeza que não quereria mais outro transporte.
Onde encontraria eu tanta magia? Só neste espaço...com o mar ao fundo e onde há uma menina escritora que é quase fada!
Mil beijos.
Graça
Excelente
Fiquei com a ideia
o tempo passa
que o cavalheiro não tinha cartola
só pássaros
se bem me recordo era eu
Abraço
Esta manhã sentei-me aqui na paragem do autocarro. Vi a moça e as suas roupas simples, o seu olhar interrogativo e os seus medos.
Aqui ler é um prazer e uma descoberta em cada paragem e em cada animal que sucessivamente vão entrando.
Termino agradecendo estes momentos em que também viajei, desprendendo-me da folha de jornal.
Encantada, penso, se a rapariga não poderá ser a mesma que ontem salvou um pardal bebé de ser atropelado, recolhendo-o e pedindo a um jovem alto que o colocasse no ramo dum pinheiro manso, nesta cidade onde apenas regresso para dormir :-D
um abraço
Para além do encanto da história, existe também a convicção de que a timidez de uma rapariga não é sinónimo de ingenuidade.
E adorei a imagem do coelho preto e branco com uma papoila ao peito :)
Um abraço!
Interessante esta viagem de autocarro.
Adorei ler. Como sempre é um momento de magia em que nos abstraímos do resto do mundo.
Beijinhos e obrigado
acho que a viagem de autocarro por vezes nos faz sonhar com as imagens que nos pode proporcionar.
gostei, como sempre.
um beij
Não alinhas palavras
Fá-las desfilar tecendo uma realidade para além do real
O pior (ou melhor?) é que entro nesse teu mundo...
Senti saudades dessas suas palavras, mas os últimos dias foram de pressa e não houve meio de eu vir aqui a me preencher com teus belos dizeres.
Fiquei pensando nessa rapariga e nos detalhes dessa viagem, lembrei-me dos meus dias de comboios quando ia a Coimbra (universidade) e ficava apreciando a paisagem enquanto imaginava os caminhos de Pessoa e sua Lisboa. Viajei, eu sei, mas a culpa há de ser tua e de tão belos dizeres. Vou ali ler a continuação para saber o que farás essa rapariga que não dorme...
bacio
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