Da torre incompleta avistam-se três ilhas que correspondem
a outros tantos reinos. A mais longínqua tem cem metros quadrados e é habitada
por malévolos macacos verdes de dentes amarelos. Alimentam-se das folhas verdes
de um arbusto e de lagartas viscosas e igualmente amarelas, mas os ratos são o
seu alimento preferido, gostando deles grelhados e tostados. Pegam-lhes pela
cauda, mastigam-lhes a carne e cospem os ossos frágeis. O seu rei é o macaco
Máximo conhecido pela sua ferocidade, implacável para com os da sua espécie,
vingativo para com as outras. Os marinheiros temem aportar àquele reino e só os
mais corajosos e curiosos o fazem.
A segunda ilha tem metade da superfície da primeira e é o
reino do rapaz Azul. Os seus habitantes são crianças de olhos e cabelos azuis e
ninguém sabe como foram lá parar. É a mais bela das ilhas, frondosas as
árvores, nascentes de água doce que brotam das rochas e uma praia imensa de
areia fina e águas transparentes. Os meninos azuis constroem casas de madeira e
brincam o dia inteiro. Às vezes cansam-se e ficam com as saudades de crescer a
sombrear os olhos. Então o rapaz Azul deixa-os partir num barco à vela e
navegadas duas milhas os olhos regressam à sua cor original e os cabelos
pintam-se de castanho, louro ou preto. Quando chegam a terra os braços e as
pernas são já grandes, mas guardam para sempre uma marca azul no lóbulo da
orelha esquerda.
A terceira ilha é a mais pequena com apenas quinze metros
quadrados e talvez nem seja uma ilha mas um enorme rochedo. Possui dois faróis,
um em cada uma das pontas e um faroleiro. A sua rainha é a gaivota Guincho,
mais pequena que as outras espécies mas muito mais inteligente e todas as
gaivotas guincham ao entardecer. O faroleiro acende os dois fachos de luz
branca porque a norte são traiçoeiros os baixios e a sul sopra o canto das
sereias.
Para o homem que contava e para o rato que ouvia, eram tão
visíveis e palpáveis estas ilhas, como as pedras, os livros ou os armários da
cozinha. Por isso também não se espantaram quando o rato falou. O homem, porque
acreditava em prodígios, o rato porque os aceitava como naturais. Foi nessa altura que lhe deu o nome de Rato, ao
rato.
A chuva tinha regressado, temporã, forte e fria.
Estragava os rebentos de cerejeira, aguava os morangos, comprometia os
pêssegos. Da terra alagada chegava um cheiro bom e as folhas das oliveiras
conquistavam o tom verde seco das suas origens.
Os dias alargavam-se em maio e uma hora após o pôr-do-sol
o homem sentava-se nos degraus do pátio a ganhar fôlego para continuar o seu
trabalho. O rato, invisível, deambulava por ali. E repentinamente, vinda do
alto, deslizou sobre as suas cabeças uma enorme e silenciosa massa branca. O
rato gritou, Máximo! Não é possível, pensou o homem, o macaco é verde, mas de
facto não viu nada. E foi o nada que lhe respondeu. Mas por muito pequeno e
diferente que seja aquele que nos faz companhia e reconhece o som da nossa voz,
não nos daremos tréguas na sua busca até o encontrarmos e entendermos porque de
nós foi roubado.
E procurou-o na cisterna abobadada, nos túneis, nos
quartos, nas salas, nos canos da água, nos buracos dos rodapés. A senhora da
consolação seguiu-o e soltou o cão e disse, busca! e deu-lhe a cheirar um pelo
do bigode do rato Rato. Mas o cão habituado apenas a mimos e rezas perdeu-se
pelos corredores a cheirar os espíritos da casa. Por fim o homem lembrou-se da
torre incompleta de onde se avistavam as ilhas e iniciou a subida pela longa
escada em caracol. Eram duzentos os degraus e descansou a cada cinquenta e
chegado ao cimo respirou. A penumbra fez com que piscasse os olhos e apurasse
os ouvidos e avançou com todo o cuidado pela plataforma. E viu-a, pousada numa
das traves. Grande, a face branca dir-se-ia um coração, os olhos fixos, o corpo
mesclado de castanho alaranjado e ele calado o coração aos pulos. Ela roda a
cabeça num impensável grau e abre as asas enormes de uma brancura imaculada e sai
pelas janelas, um voo silencioso, noturno, solitário. O homem sente-se
estontear perante aquela coruja, nem ave nem anjo. E à sua direita numa
abertura das pedras descobre um ninho com cinco pequenos pássaros e o rato no
meio deles, vivo e esperto a contar e as pequenas corujas a ouvir,
A segunda ilha tem metade da superfície da primeira e é o
reino do rapaz Azul.
Depois o tempo parou apenas um segundo, indeciso o voo na
continuidade da vida.
O homem, o rato, a senhora da consolação e o cão,
encontraram uma linha suspensa que não está ainda escrita. É como as sombras
escondidas da lua irremediavelmente cheia, é como aquilo que perdemos e não
sabemos aceitar. É o perigeu de todos os seres diferentes que tomam a nossa voz.
E ficaram horas a contemplar o voo da coruja. Por fim a
senhora da consolação deu uma tigela de leite ao rato, guardou-o no bolso da
saia e o homem disse olhando a ave,
Chamo-lhe Ângela, o nome da minha mãe.
30 comentários:
Olá, Manuela!
Se me restasse alguma dúvida acerca da teoria sobre a evolução das espécies, elas ficariam hoje dissipadas de vez: com este macaco de gostos requintados que hoje aqui encontrei.E que até voa, imaginem, feito de quem nem por um segundo duvido, depois de aqui o ter lido.
Aliás, se aqui continuar a vir, daqui por mais algum tempo já acredito em tudo...
Bom fim de semana; um abraço amigo.
Vitor
MANUELA BAPTISTA
Senhora da Consolação
que ao rato o guardas no bolso
voa a coruja e te oiço
o que imagino é teu poiso
Senhora da Consolação
consolo da criação
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 5 de Maio de 2012
Os equilíbrios, os prodígios, as memórias, o tempo com rumo certo, tudo isto numa escrita ímpar, com a chancela duma grande escritora.
Beijo :)
Mais um excelente conto.
Nem tenho mais palavras, apenas digo que és uma escritora de talento.
O voo da coruja não é silencioso. É inaudível. Já experimentei essa sensação. Quando entrei num sótão onde estava uma, sem eu saber, levantou voo e ficou imóvel no ar durante cerca de 2 ou 3 segundos a pouco mais de 1 metro de mim. Depois, rodou e saiu pela janela. O mais curioso é que não me assustei...
Manuela, querida amiga, tem um bom fim-de-semana.
Beijo.
Nilson Barcelli
inaudível,
é isso mesmo, Nilson
Que bom seria viver nesse mundo
imaginário das suas histórias,
para fugir a esta "real realidade"
tão pouco motivante.
Um bom fim de semana.
Bj.
Irene Alves
responsabilizo a autora deste conto, por incessantemente me incendiar a imaginação: eu não leio apenas o que escreve, leio o que [ainda] nem por sombras lhe veio à cabeça, nem sei se virá algum dia, e fico tonto, desesperado até, porque há personagens que me saltam da cabeça sem me pedirem licença, somente com o intúito de entrarem numa historia que não lhes pertence, para confundirem a autora, para me confundirem a mim (?)
é o caso do Flautista de Hamelin, que não para de me chatear, diz-me, que o que contam dele não corresponde à realidade, que não foi ele quem sequestrou as crianças azuis, nem tão pouco os irmãos do ratito que agora está no bolso da Senhora da Consolação, que foi o macaco, verde de tão malvado que é
e eu insito, que está confundido, que esta história não é a dele, que me está a tentar enganar também a mim, à autora, só para se redimir de alguma história mal contada, será?
ups já não entendo mais nada, passou a voar por cima de nós o Peter Pan, e o tipo ia a tocar uma flauta, atrás dele, um bando de crianças com asas azuis, alegres e felizes, e atrás destas, um mocho com asas em forma de harpa, onde uns ratos embrulhados às suas cordas dedilham notas estranhas
mas, o fautista de Hamelin já aqui não está? safado, apanhou-me distraído a olhar para uma ilusão e...
Manuela, por favor: onde é que eu estou, em que ilha, em que sonho, em que ilusão?:))
ponha ordem nisto, e não se deixe enganar, ok?:)))
lindo demais, Manuela... continue!
beijo
Nandinho
ups!
Flautista e não Fautista... sempre com a cabeça no ar, a olhar para os mochos com asas de Harpa! :))
A simplicidade sua e do espaço (que é a mesma) é genial.
.
.
. "Contar histórias é uma das mais belas ocupações humanas" .
.
. disse.o . Eça de Queirós .
.
. como todas as histórias que aqui se contam . como todos os contos que aqui se narram . numa escrita tão simples ao ser tão sábia . tão bela ao ser tão humana . tão brilhante ao ser tão audaz .
.
. e Eça disse ainda .
.
. porque "Infelizmente, quase sempre, os contistas estragam os seus contos por os encherem de literatura, de tanta literatura que nos sufoca a vida!" .
.
. por aqui . um respiro . um fôlego . uma lufada de ar fresco . límpido . a saudar a literatura como uma filosofia perene de vida .
.
. as pinturas estão um espanto .
.
. esta é . provavel.mente . das mais belas páginas que o amor soube proceder .
.
. íssimo .
.
. sempre feliz .
.
.
Béu, béu!
O dia da Mãe também é aplicável aos adoptados, perfilhados, restritos ou restritivos ou lá como se chama isso?
Comigo, já somos três, com esta dúvida...
Podíamos ser quatro, mas os felinos fedorentos não contam!
Béu, béu!
Auf!
Auf!
Vou demorar tempo a ler isto tudo...
Pede ao Zaca que me traga tabaco de enrolar, se for à rua!
Auf!
Pois eu cá sou enteada,
nunca vejo gatos a entrar nas histórias.
Os óculos do Fézada estão dentro da fritadeira no armário da cozinha.
Cara Manuela,
Há pessoas que nunca se perdem, encontram-se em nós, como bem prova na última frase do seu texto.
As corujas tem qualquer coisa de impressionante em seus movimentos. E um poema assim como seu conto que me fez saborear as ilusões acerca de nos mesmos.
Bacio
Fascinada, como sempre... e sem palavras.
Insisto apenas que não devias privar muitos outros de te ler.
Partilho, na esperança de algum modo o fazer.
Obrigada
Beijo
Um texto-tela
Um desenho
de três ilhas
pintadas
com palavras
Vou lendo
comovido
sem que tenha a certeza
de ter apanhado todo o sentido
Fico com três
pelo menos três certezas
os ratos falam
cabem num pequeno bolso
e tua mãe se chamava Ângela
O resto?
O resto é sonho
e memória pintada
a cor aguada
É que eu gosto de vir aqui... :)Avisto ilhas, subo e desço degraus, vejo aves e ouço ratos. Aqui não encontramos linhas suspenas... nunca perdemos, sempre ganhamos e aceitamos as sombras das tuas histórias irremediavelmente cheias... :) Beijinho e boa semana
Quem comenta aqui e lá (FB)
São Banza, Pedro Martins Ferreira, Eva Gonçalves e 3 outras pessoas gostam disto.
Maria Fernanda Martins Ferreira Não deixem de ler os contos da Manuela. São maravilhosos.
há 18 horas
Rogério V Pereira Não falho...
há 17 horas
Eva Gonçalves Nem eu!!
há 17 horas ·
Maria Fernanda Martins Ferreira Adoraria ver os seus contos publicados.
Há por aí tanta gente a impingir-nos tanta porcaria e a vendê-la... é uma pena que as Editoras não apostem mais na qualidade.
há 8 horas
Rogério V Pereira
Um texto-tela
Um desenho
de três ilhas
pintadas
com palavras
Vou lendo
comovido
sem que tenha a certeza
de ter apanhado todo o sentido
Fico com três
pelo menos três certezas
os ratos falam
cabem num pequeno bolso
e tua mãe se chamava Ângela
O resto?
O resto é sonho
e memória pintada
a cor aguada
há 6 horas
Tio Do Algarve
São muito bonitos os contos da Manuela!
há cerca de uma hora ·
Manuela,
Os seus contos são belos...
Bjs
E a Srª da Consolação,
fica espantada também com o milagre da vida, na torre alta subida!
Eu acho que conheço aquela rainha gaivota ;)
Bjs
E minha imaginação vai para longe, lá para além do mar,onde uma senhora escreve contos com mar ao fundo...
E que contos... Que contos!
Dois beijinhos,
Linda Simões
Querida amiga
Todas as palavras são poucas para exprimir todo o que sinto quando aqui venho, então resolvi me calar diante da obra.
Com muito carinho BJS.
Num mundo que me parece cada vez mais inóspito, entrar aqui é transformar-me por magia, talvez numa gaivota que percorre três ilhas, embrulhada em palavras bonitas e promessas risonhas e é amiga de uma coruja, de um rato e de meninos azuis que me lembram a possibilidade de construir um futuro de paz e amor.
Depois...há uma senhora que nos guarda a todos e nos aconchega no seu bolso, perto do coração. Chama-se Ângela que é nome de anjo...
Será este o segredo?
Estou de acordo com a Ná! Todos esperamos um livro onde todos estes contos, que nos encantam, estejam ali, disponíveis para quem, por magia, possa entrar em verdadeiros paraísos.
Beijo amigo
Graça
What an extraordinary and facinating story.I was totally absorbed,and did not want it to end.I will certainly visit again
very soon.
Thankyou for becomming a recent
follower of my blog.
Regards.
Primeiro imaginei as ilhas e achei que conhecia alguns desses rapazes com uma mancha azul nas orelhas, parece-me que vivem disfarçados entre os humanos que já não sonham...
De prodígio em prodígio, o voo da coruja deixou-me sem palavras, suspensa no ar com ela...!
Gostava de poder comentar melhor o que aqui leio, mas estas palavras são sempre "uma linha suspensa que não está ainda escrita". Mas uma linha que é tão bom ler, sempre e outra vez!
Beijos
Uma mãe é uma pessoa que ao ver que só ficam quatro bocados de torta de chocolate tendo cinco pessoas,
é a primeira em dizer que nunca gostou de chocolate.
Às vezes, as palavras se perdem na expressão da palavra Mãe.
Nenhum dicionário definirá a magia do seu significado e,
em todos os idiomas, traduz o mesmo sentimento:
Ser mãe. No decorrer dessa semana só levarei mensagem do dia das mães.
A você mãezinha que viaja comigo meu eterno carinho e agradecimento.
Ser mãe é graça e benção por isso essa semana será só nossa.
Mães de todo esse mundo . Feliz dia das mães. Dia das mães é todos os Dias.
Sei em Portugal foi no Domingo
mais dia das mães tem que ser todos os Dias.
Eu adorei seu poema como todos poeta e poetisa.
Portugal para mim cada casa tem um poeta vcs são tudo de bom.
Uma metáfora sublime! Parabéns. BShell
Uma linha suspensa que não está ainda escrita.
Mas a senhora da consolação, tal como o nome consolará.
tens um talento para "contar" estórias muito inovadoras, e que me delicia ler.
tem passagens verdadeiramente sublimes.
eu achei esta que cito, tão simples e tão bonita, que só mesmo a Manela.
# Foi nessa altura que lhe deu o nome de Rato, ao rato.#
um beij
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