Tenho uma marca azul no lóbulo da orelha esquerda. Não nasceu
comigo mas existe desde o instante em que comecei a recordar. Não me lembro de
ter três anos de idade ou do número de degraus que conduzia a casa da minha
avó. O meu avô fumava cachimbo e fazia licores de folha de figueira, de
hortelã-pimenta e de café. Eu não gosto de licores mas sei que um dia disse,
quero um piano. E é esse o primeiro objeto de desejo que me lembro desejar. Não
se concretizou.
Depois há outras ilhas. Dizem-nas oceânicas, superfícies
emersas das montanhas que habitam o fundo do mar. Imaginemos uma ausência de
água salgada e o que seria a privação de ilhas, mas esta é apenas uma enganosa
teoria, uma efabulação perversa de quem gosta de ser marcado.
A primeira das ilhas é um peixe apaixonado que perdeu a
cabeça por uma maré alta e possui dois faróis, um em cada uma das pontas. A
oeste, faz-nos acreditar na eternidade da vida. A oriente, reconhece-nos o
direito à brevidade das coisas. A sua luz é igualmente brilhante, insinuante,
verdadeira. O peixe ilha agita as barbatanas dorsais e empurra a escuridão para
um lugar desabitado onde não queremos entrar.
A segunda é um golfinho de quatro caudas que produz um
som inaudível para os peixes, mas percetível para a maioria dos homens-lua.
Estes aprendem a linguagem das notas musicais, das pausas, dos acordes, das
tonalidades dominantes, o preto e o branco das teclas. As cordas
horizontalizam-se ou não. Lado a lado uma ilhota mais pequena, habitada pelos espíritos
da música que pacificam as dúvidas, as interrogações e aquilo que não podemos
dominar.
A ilha baleia é sólida e simultâneamente ágil, navega à
velocidade do vento, mergulha nos recifes de coral, regressa à superfície
envolta em algas e estrelas, rodopia no ar, espaneja água e energia para logo
se aquietar naquele canto que se diz de baleia, ritmado e quase humano. Viaja
com ela o peixe-espada que a defende e protege e a faz rir quando ela tem medo
da noite e do peixe-martelo.
As palavras são como as pessoas, têm faces. Umas para
significarem aquilo que queremos dizer, outras porque têm significado para nós.
Uma noite encontram-se.
E são muitas vozes e um piano e um silêncio de ilhas.
26 comentários:
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. i.respiro.me . só .
.
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. e todo o tanto é tão e.terno .
.
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. íssimo . respirante .
.
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eu, tu, ele, todos nós...
hoje, especialmente hoje, somos ilhas sem voz
fica em mim e para sempre, o silêncio que me fala o teu piano, Bernardo
e para onde quer que tenhas ido, há um piano iluminado pela luz perpétua de um farol
é apenas um até já, Bernardo!
um beijo, Manuela!
nandinho
Um conto sem ponto a acrescentar...de tão completo que é!
Talvez a cauda do piano fosse parecida com as dos golfinhos...apenas isso...
Bjs dos Alpes
Manuela,
Foi aqui que aprendi a verdadeira dimensão da música tocada por Sassetti.
Tanta vez que a ouvi enquanto lia as histórias! Em silêncio, sem deixar comentário.
Não vejo melhor som para ligar as palavras que nos escreves!
E agora, como vai ser?
Cerro os dentes, como o Mário Laginha, hoje em directo,
e ouço-o mais uma vez.
Sinto que vivo momentos únicos,
se me é permitido,
associo-me, através da palavra,
a tão bela homenagem.
Muito grato
Grande abraço
Querida amiga
Não sei escrever tão lindo, só sei que quando leio fico emocionada. Talvez as palavras para mim ainda sejam incompletas, por isso o silêncio tenha tanta importância.
Agradeço pela sutileza de me fazer sentir.
Com muito carinho BJS.
MANUELA BAPTISTA
... ando à volta da morte de um Artista num acorde de vozes como ilhas em silêncio ...
E o piano cala-se.
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 12 de Maio de 2012
Muito bonito, como sempre!
Manuela,
as suas e as nossas palavras, não são nunca cânticos de baleia.
Temos que as sentir, temos que as entender e depois de uma longa reflecção, humanizamo-nos. Porque para humanizar, temos que primeiro compreender, todo o contexto do texto.
Olho para trás e relembro Maggie Taylor e quero acreditar, que também foram por ela escritas com o coração.
E saber que hoje, mais que no passado e porque são de verdade,sentir que elas vibram ainda e também com toda a na nossa emoção.
O piano foi um sonho por cumprir, também eu o pedi e não se concretizou.
Mas o tempo e com o tempo ele acabou por surgir.
E hoje todos os dias toco uma composição de Yann Tiersen, Comptine d`un autre eté: l`aprés-midi.
E penso que muito em breve tocarei Somewhere in Time.
E antes que seja tarde,como com o Bernardo, que chegue à ilha o piano sem as cinzas de um vulcão e que traga sempre a cor da música e a luz que ilumina a sua composição.
O Piano, a ilha com uma túnica inconsútil e a noite sem escuridão.
E o Bernardo, para nos recordar, como é curta, a vida e pequena, pequenina e pode criar muita tristeza, dor e desilusão, se não for vivida, com alguma reflecção e com o controlo de alguma pulsão.
Fica Bernardo, fica ainda no nosso coração, com a legalidade da tua expressão.
um texto que logo que comecei a ler, pensei ser para o Bernardo.
uma sentida homenagem ao músico que buscava o silêncio.
um beij
E dizem também que cada homem/mulher é uma ilha. Cada um com os seus sonhos, as suas aspirações as suas maneiras peculiares e pensamentos únicos.
Cada ser humano uma ilha capaz de criar energia e vida até um dia que se faz noite.
Bj
Ah, Manuela, quando as palavras se encontrarem, certo é que alcançaremos um novo patamar. Verão os meus olhos essas águas?
Obrigado, sempre.
Beijo :)
Olá, Manuela!
Que bom aportar às ilhas deste arquipélago encantado; quem sabe se a mítica Atlântida, aqui trazida à superfície por obra de muito talento...
Um abraço; bom fim de semana.
Vitor
E as pessoas são como as palavras. Umas agarram-se à vida e outras não. Ficam os sons para além das palavras, audíveis para muitos.
Mais um excelente texto, como é hábito.
Manuela, querida amiga, tem um bom fim de semana (ou o que resta dele...).
Beijo.
A magia das palavras aladas.
Obrigada por este momento mágico, amiga Manuela.
Beijo
A primeira coisa que eu desejei foi um caderno vermelho que vi em uma vitrine, nunca o ganhei porque não pedi por ele, apenas o desejei... E agora lendo suas palavras fui de encontro a essa lembrança que deveria estar perdida em mim... Somos ilhas, não e mesmo?
Fábula, com nuances de coisas mágicas, sonhos, desejos silenciosos...noite a dentro, em túnel do tempo...belo!
Beijos, Manuela,
da Lúcia
Permaneci em silêncio, na busca incessante das palavras que aqui lhe queria deixar, mas elas, as palavras deixaram-se embalar com ao som do piano e, simplesmente adormeceram.
Deixo um beijinho e a emoção sentida neste momento aqui... linda homenagem!
Ana Martins
Your story is magical and moving.
I think I could listen to the music for hours.
Regards.
Volto logo.
Estarei ausente por cerca de duas semanas.
Beijo
Ná
Mais um belíssimo conto que nos emociona com a sua intensidade e magia.
Beijinhos
Muito bonito!!
Gostei muito do conto em si e da forma como lidou com as palavras!
[]s
Rafael
Desce Mais Uma!
Minha querida
Que dizer desta melodia que tocaste com o teu imenso talento...senti em silêncio, como se deve ouvir o que é BELO.
Deixo um beijinho com carinho
Sonhadora
Era tão bom que os homens também fossem ilhas como o peixe que tem dois faróis, como o golfinho capaz de ler uma pauta musical ou como a baleia forte e sólida, onde pudéssemos ancorar com segurança nas noites de tempestade e entender porque um piano se calou de repente e se deu a queda de um anjo que não queria ser ilha perdida no arquipélago humano...
Beijo amigo
Graça
Belo texto com uma cadência especial que simboliza,para mim,
as palavras, o mar e suas ilhas
dispersas e o silêncio da música que ouvimos e gostamos...
Muito bom e melódico.
Maria Luísa
Auf!
Peço desculpa pela minha ausência, mas tenho uma filha hospitalizada e ando sem tempo para nada...
Auf!
Auf!
Béu, béu!
Coitadinha do estâpor da garota!
Béu, béu!
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