III - lanceolada

Alice era a mais velha. Acordava antes dos pássaros e deitava-se quando já todos dormiam. Era sólida como os carvalhos e tinha a beleza antiga dos rios antes do degelo. Prendia os cabelos em duas longas tranças e quando se ria a casa abanava e o cão escondia-se debaixo da mesa.
Era corajosa, curava os galos da testa e as feridas nos joelhos e sabia ouvir os segredos que lhe contávamos e queríamos guardar. Pegava na faca e barrava de manteiga as fatias de pão e dizia, se tu quiseres. Assim, se tu quiseres e nós já sabíamos que era ela que queria, que precisava, que nos estava a pedir. Ninguém resistia, porque querer, é todo um caminho que nos leva e na volta a estrada é outra e à primeira trincadela estávamos já rendidos a dizer sim. Quando o sabor salgado da manteiga atingia o céu da boca, ela punha-nos a dobrar os lençóis, a regar o canteiro das túlipas, a separar as gemas das claras.
Não tolerava a mentira e apanhava-nos na mais inocente delas, mas espantosa era a sua capacidade para resolver equações. Do primeiro e do segundo grau. E somava, multiplicava e dividia sem precisar de lápis ou papel. Poderia ter ido longe, diziam. Mas não fora, ficara ali junto de nós e quando todos partimos ela permaneceu. As florestas de carvalho não mudam de casa e é dela que eu me lembro quando sinto uma necessidade absoluta de confiar.
Tantas foram as voltas e as contravoltas da minha vida, mas quando procuro as minhas raízes, encontro-as. Nos dedos finos de Laura, no rapaz lua que Deolinda me bordou e que sou eu, na coragem de Alice.
Regressamos então os quatro, eu e as minhas irmãs à casa do piano e alguém diz, se tu quiseres e soltamos os segredos guardados, dobramos e desdobramos os nossos sonhos e até o cão que é porventura outro e não o mesmo, perde o medo e sai debaixo da mesa. Alinhamos frasquinhos cheios da terra dos lugares que habitamos, Alice não, a terra dela é esta, lá fora, a das tranças, a da beleza antiga dos rios antes do degelo.
Amanhã talvez chova ou seja apenas primavera e eu insonoro e invisível no meu cavalo branco.


diz-se da flor de mb






28 comentários:

Unknown disse...

Tantas foram as voltas e as contravoltas da minha vida,

Es un placer leerte, Manuela.

Dulce disse...

"Tantas foram as voltas e as contravoltas da minha vida, mas quando procuro as minhas raízes, encontro-as.."

Que bom foi agora.. e é sempre vir até si, querida Manuela.
Encontro por aqui muito de vida.

Beijinhos.
dulce

Rogério G.V. Pereira disse...

Maria João era a mais velha...

Diz-me, que fazes para escreveres assim o mesmo que me assiste?
Não, não é igual.
Mas é tão, tão parecido...
que me sinto comovido, espiado...
ou, pior,
como se o que contas se antecipasse ao que ia contar...

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Vais-te tornando mestre da trilogia, essa é que é essa!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 3 de Março de 2012

Isa Lisboa disse...

É bom ter raízes assim, ter um rosto na memória quando precisamos de confiar... Pessoas assim são uma dádiva.
Lindo texto, gostei de conhecer todas as irmãs, de as ir conhecendo ao longo dos últimos excertos.

AC disse...

Manuela,
Estas (re)visitas às origens são tão doces e, em simultâneo, tão profundas. É o talento das palavras da (sua) alma, eu sei!

Beijo :)

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

por vezes sou eu que reavivo as minhas memórias ao ler a autora, eu também tive uma Alice assim na minha vida.

obrigada!

um bom fim de semana!

beij

. intemporal . disse...

.

.

. "Boa esperança" era o nome da casa . tinha dois andares, sete portas, vinte janelas, cinco varandas e seis torreões .

.

.

. de lá . surgiu.nos uma escritora . detentora de uma sensibilidade ímpar . da qual nos orgulhamos . todos os dias .

.

. entre.tanto . alinho frasquinhos cheios de areia . de azul e de mar . tão distante . e sempre e para sempre tão presente . na minha memória .

.

.

. íssimo . sempre feliz .

.

.

Kika disse...

Auf!

Quantas vezes me pedes que te encontre as tuas raízes... Quando escondo os meus ossos...

Medroso é que eu não sou! Mas, debaixo da mesa é onde eu gosto de estar! Sabes porquê!

Auf!

Auf!

Anónimo disse...

Olá, Manuela!

Personalidade forte a dessa Alice: figura tutelar, referência de tempos idos, daquelas que preenchem memórias de infância.E tocante é essa quase adoração por ela...

Um abraço

Vitor

Anónimo disse...

Béu, béu!

Eu também sou super corajoso! Graças à minha língua comprida, curo todos os meus galos, sem precisar de ajuda!

Béu, béu!

alegria de viver disse...

Olá querida amiga

Um lindo conto, que nos põe a pensar.
Existem pessoas que mesmo estando muito longe, algumas vezes nem sabemos aonde, nos fazem sempre companhia, povoam nossa lembrança, nosso espírito as procura sempre e, as encontra com a força do
pensamento.
Essas são capazes de confortar nossa alma.
Obrigada amiga.

Com alegria BJS.

Unknown disse...

Manuela, boa noite!
E é tão bom regressar ás origens, principalmente quando as recordações nos enchem de emoção.

Beijinho,
Ana Martins

Unknown disse...

Manuela

não sei em que parte do corpo, o escritor gera os seus personagens, porque nada sei sobre o tal "processo da criação literária", às vezes penso que o seu corpo é todo ele uma enorme incubadora...

sei apenas, que é por entre os dedos que os vai parindo


obrigado, Manuela...
por tantas Lauras, Deolindas, Alices, rapazes Lua e tantos e tantos outros seus filhos

um beijo de enorme admiração!

Nandinho

Nilson Barcelli disse...

Mesmo que não quisesses, este é mais um dos teus excelentes contos.
Tens talento e criatividade para dar e vender...
Manuela, querida amiga, tem um bom domingo.
Beijos.

Beatriz disse...

Manuela

As suas histórias tão belas são feitas para serem lidas à beira de um rio ou mar calmo, ouvindo o canto dos pássaros, em paz....

Um beijo e um belo domingo!!!!

Bia

www.biaviagemambiental.blogspot.com

Laços e Rendas de Nós disse...

As consonâncias do tempo, da música, da escrita... de tudo.

Rendida!

Beijo

Anónimo disse...

"As florestas de carvalho não mudam de casa e é dela que eu me lembro quando sinto uma necessidade absoluta de confiar." - Memórias tão robustas e confiáveis, junto com o talento da escritora, "só" podem resultar em contos deliciosos! Parabéns, Manuela, encantam-me sempre seus textos!
jc

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Diz-se da flor e da escritora maravilhas.

Sempre há um figura assim, forte marcante, nas vidas que só são nossas porque Alices existiram.

Belíssimo, Manuela.

Beijo

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

reler...e deixar o meu sorriso :)

boa semana!

mz disse...

A força,
a coragem
o saber saber levar da Alice...e a tua escrita, Maria Manuela!!! É linda, suave e muito doce!

Eu adoro vir aqui.
Um abraço!

Branca disse...

Manuela,

Peço desculpa de não comentar agora a história. Voltarei mais tarde para ler e comentar os três capítulos de uma vez.
Agora apenas quero deixar os meus votos de dias felizes por todos os anos da sua vida, porque me pareceu que deixei passar em branco um dia de Fevereiro que era e é importante e que gostava de ter lembrado, mas a minha memória não anda em alta.

De qualquer forma, um abraço tardio mas com vontade.

Beijos
Branca

manuela baptista disse...

Branca

agradeço os seus votos de dias felizes

em branco
nunca deixamos nada, não se preocupe

um abraço

Mariazita disse...

Estava atrasada na leitura... li tudo!

" Ai há quantos anos que eu parti chorando..." e no regresso encontrei as minhas raizes que dão (em parte) pelo nome de Alice!

LINDO!

Beijinhos

Silenciosamente ouvindo... disse...

Um beijinho muito especial no dia
de hoje.
Irene Alves

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Suspensa no tempo fico, à espera doutro tempo.
Tempo de sossego e de felicidade que de momento estão "a leste" ...

Beijo

Branca disse...

Gostei de ler toda a cumplicidade das vivências dos quatro irmãos da casa do Piano, num tempo em que toda a infância era uma aventura, que perdura na alma de quem a viveu.

Beijos Manuela.
Branca

manuela baptista disse...

obrigada a todos!