Era uma vez um homem que tinha as mãos enormes e desajeitadas. Quando levantava o dedo indicador da mão direita, caía um ninho de pardais dos telhados e se acenava a alguém em sinal de alegria ou de boas vindas, o vento levantava-se de repente e provocava uma tempestade no alto das serranias.
Se esticasse o pescoço e depois os braços, conseguia afastar as nuvens negras que pairavam sobre a sua aldeia e se por um acaso batesse as palmas, os alarmes dos carros, das lojas e dos bancos desatavam a apitar.
Nas festas pediam-lhe que prendesse balões nos pontos mais altos, que tocasse o sino da igreja, mas estava proibido de limpar a loiça e de afagar o cão.
O seu nome era João grande. E às vezes entristecia-se de ser assim.
Tinha noites em que os sonhos maus invadiam-lhe o quarto, nas paredes coladas de osgas e lacraus e a lua era uma ausência negra como os lobos negros que se escondiam debaixo da sua cama. Não entendia a estranheza daquele medo que lhe roubava o ar dentro do peito e nas sombras projetadas apenas via as suas mãos gigantes e agigantando-se deixavam-no e ganhavam vida. Ele permanecia, gelado, paralisado, os braços a esvaírem-se em sangue à espera da madrugada e dos primeiros sinais de luz.
A manhã rompia e restituía-lhe as mãos, mas era João cansado com um traço escuro desenhado nas maçãs do rosto e aquele desejo forte de querer ser diferente.
Foi então que ela chegou. Alugou uma casa branca na segunda rua paralela ao mar. Abriu as janelas e pôs a música a tocar, espalhou os cabelos cor de fogo pelas esquinas, calçou as sapatilhas pretas, enrolou as fitas de seda no tornozelo e disse João, tu que és grande, ajuda-me a colocar estes cartazes! e podia ler-se
Ensina-se a dançar.
Ele ajudou. E ela pediu para ele escrever em letras pequeninas, local: casa branca na segunda rua paralela ao mar. O pagamento aceita-se em víveres, flores, tempo e só em caso de força maior, em dinheiro.
João tremeu e as letras pequeninas esborrataram-se em tinta de água e ela disse, não faz mal, as tuas mãos são maiores do que tu, mas podes mudar a tua forma de as olhar.
João imaginou cada um dos seus dedos com uma sapatilha preta e num palco de marionetas as pessoas a aclamar e riu-se e o traço escuro sob os seus olhos aclarou e ele disse, inscreva-me na sua aula, não sei como lhe vou pagar mas quero aprender a dançar.
Na sala retangular as crianças dos seis aos doze anos deram as mãos e fizeram uma roda e o número tinha de ser par e par fez João grande com a rapariga das sapatilhas pretas e ela dizia, as vossas mãos são asas de pássaros, pétalas de flor, velas de barcos enfunadas pelos ventos. Eles deixavam-se levar, gravidade zero, o éter a sua natureza. E na aceitação da diferença João grande mudava, desapercebidamente ajeitado e feliz. Os sonhos bons invadiam-lhe o quarto nas paredes coladas de danças e compassos e debaixo da cama crescia a hortelã.
E quando pela primeira vez fez uma festa a um cão sem ele ganir, João soube que era chegada a hora. Com as suas mãos enormes e sensíveis começou a construir um barco, leve, etéreo, velas enfunadas pelos ventos.
Nessa noite João grande pegou na tinta de água e em letras pequeninas escreveu em todos os cartazes,
O pagamento aceita-se em víveres, flores, tempo e em caso de felicidade maior, em barcos.
35 comentários:
Lindo!
Simples, doce, terno....
Lindo!
MANUELA BAPTISTA
... em barcos.
Barcos de uma felicidade maior para viajar!
Bravo!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 17 de Março de 2012
Quando acabei de ler a minha alma sorria, aconchegada no melhor que nós temos..
Ah, Manuela, espero que aceite um simples obrigado pelo seu maravilhoso dom.
Beijo :)
Olha se eu fosse cão,
estaria espalmadinha como churrasco!
Pois é Manuela um homem com mãos grandes e desajeitadas.
Uns são filhos de um Deus Maior e outros são filhos de um Deus Menor. Nascem assim.
Mas como os meus pensamentos são envolvidos sempre em bondade e positividade, acredito que tudo pode mudar e um dia o homem de mãos grandes pode aprender a dançar.Uma dança bela, bonita e generosa.A dança dos homens bons.Seguramente nesse dia o homem será feliz. Linda a sua história, faz-nos ter esperança, que o que é feio e mau hoje, pode ser belo amanhã...
E grandes ficamos nós, quando a lemos.
Também aqui, se aprende a dançar e a viajar com o vento.
Pudesse eu pagar, o que nunca tem preço.
Um beijo, Manuela. Obrigada!
Auf!
Um dia, deixarás de ser a "Manuela" para passares a ser a "Poetisa", vais ver!
Em Portugal, é tão simples quanto ridículo, como sabes...
Auf!
Auf!
Béu, Béu!
Ah ah ah, Fézadita, não me faças "doar" a barriga!
Ai que riso!
Béu, béu!
Olá, Manuela!
Como o carinho e amor recebidos podem mudar a forma como nos vemos...ou como de repente deixamos de nos sentir patinhos feios...
E eu cá vou voando encantado nas asas de tanta imaginação!
Abraço amigo; bom fim de semana.
Vitor
Querida Manuela:
Não sei do que gostei mais: se da história, se da música. Apenas sei que caminham lado a lado, abraçadas, inseparáveis, lindas, maravilhosas, as duas.
Um beijo
Manuela,
Uma maravilha: a palavra, o dsenho/pintura e a música.
A tarefa de lidar com a diferença é sempre difícil, mas, na tua genial história [que equipara mãos a asas de pássaro!], até parece fácil.
E o barco é o mais bonito que até hoje vi!
Enternecedor!
Muito grato
Abraço
Era uma vez uma contadora de histórias que encantava seus leitores do começo ao fim... E ainda sabia desenhar e pintar.
Era uma uma vez um conto lindo,mais um.De muitos outros,outros,outros...
Um grande abraço e prometo que darei o recado ao José...
Beijinhos,
Linda Simões
E o horizonte é o limite! E, para lá chegar, é de barco que se escrevem as rotas! No firmamento, pinceladas de felicidade iluminando as noites!
Impagável!...
Beijinho e... serão, sempre, boas viagens!
jc
Simplesmente maravilhoso...
Barcos...fantástico...a possibilidade
de partir...de ser livre...
Beijinhos.
Bom fim de semana.
Irene Alves
João grande:
na aceitação da diferença, o tamanho dos teus sonhos crescerá muito para além do tamanho das tuas mãos, e crescerão tanto mas tanto, que julgarás não ter mãos suficientemente grandes para os agarrares a todos
ensina-me a fazer um barco, e eu te pagarei com abraços!
Manuela:
grande, é o respeito e a admiração que tenho por si, pela nobreza e verdade da sua escrita, única e exemplar
um beijo
Nandinho
Creo que es el que más me ha gustado de lo que te he leído hasta ahora.
Un abrazo
Já não me devia surpreender, mas a verdade é que isso acontece sempre que te leio.
Talento, criatividade e originalidade não te faltam neste pequeno conto. És genial, minha amiga.
Um beijo.
.
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. "na segunda rua paralela ao mar" .
.
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. ! bravo . manu.ela.de.elo .
.
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. íssimo . sempre feliz .
.
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Querida amiga
Quanta beleza, a história os barcos e seu coração de poeta.
Alma generosa que nos ensina a sonhar.
Obrigada, todo meu carinho BJS.
Quero...
Mas não tenho nem víveres, nem flores, nem barcos. Posso pagar-te em rotas desenhadas, traçando os caminhos dos sonhos?
Uma excelente viagem pela sua prosa poética
A menina dança?
Voltarei para reler o conto, pois sem eles já mal respiro.
Volta depressa dessa viagem anunciada e com muitos contos maravilhosos ... como mais este.
Até breve
Beijo
Uma mensagem para todos aqueles que se sentem incapazes de vencer medos, sejam eles quais forem e que por vezes são tantos...
Que exista alguém que nos mostre a força de nos fazer mudar.
As suas histórias, Manuela, para além de maravilhosas têm sempre uma mensagem positiva. Bem haja!
Um Abraço,
Mz
E como diria Alvaro de Campos "e agora onde estou? Em casa, a navegar, a navegar"... rs
O final me fez ir além.
bacio
Saio daqui com a alma cheia de magia... Se me ensinares a escrever histórias assim...eu pago-te com todas as flores do meu jardim!!
Obrigada Manuela por me permitires...sonhar!!
Beijo
Graça
rendida à sua prosa e ao seu talento e criatividade.
um beij
Amiga
No dia da poesia deixo um beijo e...
PRIMAVERA
Amor...
Florir...
Sorrir...
E...
Na Primavera...
As flores...
Florescem...
Sorriem...
E...
Cativam o Amor...
E nós...
Deixamo-nos
Embalar...
E continuamos...
A Amar!...
LILI LARANJO
Saudações a si que também é uma
grande poetisa das palavras.
Beijinho
Irene Alves
Béu, béu!
Voltei para te reler!
Sabes, quando te leio, penso sempre que estou a ler o António Lobo Antunes, ou será o Eugénio de Andrade?
Bom, isso não interessa, desde que fiques com os sapatos a brilhar...
Béu, béu!
Auf!
Auf!
Téréré, sabes,estás a ficar cada vez mais branquelas!
Auf!
E o João das mãos gigantes e desajeitadas, assim que encontrou o amor fez-se diferente e ousou barcos construir e neles navegar sem medos.
Não me canso de te ler.
Obrigada, Manuela.
Beijo
Ná
Trago um mensagem deixada no FB que te pertence.
"Clarisse Tavares Deliciei-me ao ler esta linda história,obrigada.bjs."
Outro.
Ná
MB
agradece a mensagem do
FB
à Ná e à Clarisse Tavares
eu ando por aqui :)
E andas muito bem, diria que fazes muito bem em te manter longe do FB.
beijo
Vou ler o novo conto ^^
Linda essa Felicidade! :)
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