II - a solidão das folhas de papel cavalinho

Esta não é minha voz que vos chama. Atravessava as estradas de olhos fechados no confronto direto com o perigo, no desejo íntimo e doloroso da colisão fatal, o esmagamento de todas as partículas para me sentir senhor da vida ou da morte e afastar-me desta ladroagem que é o tempo. Ter vinte anos é desafiar os monstros, tenham eles a forma que tiverem.
A verdade é que se nada me tocou e escapei à minha própria loucura, passei a entender a loucura dos outros.
Foi por esta altura que conheci o rapaz lua. Eu de um lado da estrada os olhos a fecharem-se-me de ausência e escuridão e naquele pestanejar indeciso vi-o, do lado oposto. Fez-me um aceno e uma careta divertida. Mantive o olho direito aberto e ele, novo sinal com as mãos a dizer-me, fica, não atravesses, eu vou ter contigo. Ziguezagueou por ali fora e eu a olhar e ele a rir. Não foi assim de repente, eu sou o rapaz lua e tu? Não. Ficámos os dois sentados à beira da estrada e contámos os carros pretos que passavam e depois os metálicos e ao vigésimo quinto carro verde ele disse, sei porque é que fechas os olhos para atravessar os caminhos. E as mãos dele eram tão iguais às minhas. Foi aí que nos levantámos e fomos embora.
Eu estava certo de que a maioria das pessoas me acabaria um dia por desiludir, por isso largava-as, soltava-as sem grande consciência nem pudor. Mas aquele homem semelhante a mim não me fez perguntas e aparecia quando era desejado e saía antes da garrafa de vinho se esgotar, dois ou três fios de esparguete no prato e era como se eu me visse ao espelho nos melhores dos dias, a barba impecável, as costas direitas, o nó da gravata no lugar. Às vezes também me seguia sem eu me aperceber e deixava pistas inconfundíveis, copos de água fresca nas esquinas dos móveis, pedras e conchas da praia em cima das mesas.
Depois sem razão aparente, motivo, ordem ou justificação, lembrei-me.
Deolinda era a do meio. Acreditava na sazonalidade das marés e na sua íntima relação com as fases da lua. Amava a terra e as ervilhas de cheiro e bordara a minha toalha de batizado a ponto cruz. E quando me levaram ao colo e eu extasiado com as cúpulas e os zimbórios da minha aldeia, vestido de saias porque o pecado original decreta os metros de pano que conduzem à inclusão, Deolinda falava-me ao ouvido e eu sem saber que ouvia, ouvi, o rapaz lua que era meu e que me livraria do medo nos cruzamentos.
Hoje à noite vamos espalhar ervilhas de cheiro pelos cantos.

barco branco a atravessar o preto






21 comentários:

Unknown disse...

Boa noite
Que maravilha. Passei por aqui à tardinha, mas não quis ler com passos apressados. Queria fechar os olhos e sentar-me na beira da estrada, junto à fonte e deixar-me sonhar.
As palavras são as escolhidas e as personagens são apenas aquelas que nos falam por dentro olhando as estrelas ou passeando na brisa que nos afaga a pele.

Parabéns. Mais não sei dizer.

Hanaé Pais disse...

Manuela,
O rapaz da Lua não é seu, porque ninguém é de ninguém!
No Simples reside o Belo e a Felicidade.A água, as pedrinhas e as conhas...
O seu conto. Simplesmente Lindo...

Isa Lisboa disse...

"Ter vinte anos é desafiar os monstros, tenham eles a forma que tiverem." Que verdade que é, e mais verdade ainda que todos precisamos de um rapaz lua em alguma altura da nossa vida, porque os monstros também crescem, como nós....
Como sempre que venho cá, senti-me transportada para fora de mim, e que bom que é!

Unknown disse...

El niño de la luna
en su barquito de papel blanco
navegando


Un abrazo, Manuela.

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Hoje à noite vamos espalhar ervilhas de cheiro pelos cantos ... para despistar fantasmas e outros diabinhos à solta por aí ...!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 27 de Fevereiro de 2012

Mar Arável disse...

Incansáveis andamos sempre à procura da estrêla que inventámos

só para nós

Sempre bom viajar por aqui

Um brasileiro disse...

ola. estive aqui dando uma olhadela. legal. apareça por la. abraços.

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Feliz a Deolinda ...

que tem um amigo, Lua, que a protege na travessia da rua, lhe deixa copos de água fresca nas esquinas, conchinhas do mar e vai com ela espalhar ervilhas de cheiro pelos cantos.

Felizes nós, os que temos o privilégio de te ler.

Beijo

Unknown disse...

um barco branco a atravessar o preto,

um rapaz lua ao seu encontro,

o meu silêncio e a minha comoção,
na forma de um terno e infinito abraço


bravo, Manuela!

Nandinho

. intemporal . disse...

.

.

. cada conto que aqui leio deixa.me sempre a impressão da existência de um dom que a.final sabe crescer . sempre por aqui . simples.mente este . o mundo do gesto e da palavra feita . à medida .

.

. a peculiaridade da Sua escrita assenta na grandiosidade do coração . é dele que emanam todos os acenos . trejeitos do vento que passa .

.

. os meus parabéns . por uma escrita tão rara . plena de mérito .

.

. íssimo . sempre feliz .

.

.

Kika disse...

Auf!

Tu não me provoques, nem me metas em desafios de olhos fechados, sabes bem a razão de ser do meu nome...

Auf!

Auf!

Anónimo disse...

Béu, béu!

Cuidado se alguém escorrega nas ervilhas! Que brincadeira mais infantil!

Béu, béu!

Anónimo disse...

Olá, Manuela!

Quando se tem vinte anos é-se dono do mundo, e felizes são aqueles que encontram a alma gémea que os compreenda.
E é bom lê-la!

Um abraço.
Vitor

mz disse...

Se estivermos atentos aos sinais, talvez exista em cada um de nós uma espécie de rapaz lua que nos protege, aparecendo conforme as marés. Quanto mais não seja, apenas porque alguém um dia nos soprou aos ouvidos palavras que permaneceram.


Mais um conto muito bem bordado por tuas mãos, Manuela.
Um abraço,
Mz

alegria de viver disse...

Querida amiga

Mais um lindo conto para nos encantar.
Obrigada por mais este momento.

Então vamos espalhar ervilhas de cheiro.

Com muito carinho e alegria BJS.

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

Como sempre ler-te é adentrar por mundos de encantos.
Ter 20 anos é julgar-se imortal é desafiar todas as probabilidades.
Como sempre maravilhoso.


Um beijinho com carinho
Sonhadora

Tere Tavares disse...

Um barquinho que é mar imenso.
Abraço.

Anónimo disse...

Como se tivesse vinte anos, lá me aventurei no barquito de papel e, embora sem seu lindo jeito, vou ver se consigo, também, "espalhar ervilhas de cheiro pelos cantos"... faz tanta falta, por estes dias!
Abraço
jc

PS: Obrigado Manuela! Abraços dos dois!

Silenciosamente ouvindo... disse...

Você tem uma enorme sensibilidade
e também uma grande capacidade
de construir histórios/momentos/situações/pessoas.
É uma escritora de mão-cheia.
E eu sinto-me muito pequenina
perante a sua escrita.
Beijinho e bom fim de semana.
Irene Alves

Evanir disse...

Que o amor seja nosso único vício, multiplicado pelo número infinito,
tenha o total igual ao das estrelas no céu ou de gotas de água no mar,
e seja dividido em nosso santuário de paz.
*Everson Russo*Meu Filho*
O amor realmente é a unica força capaz de mover o mundo
nos dias de hoje pouco se fala de amor .
Tudo que mais vemos é guerra pelo poder estamos
vivendo um mundo violento muito longe da paz que tanto almejamos.
Um lindo e abençoado final de semana.
Beijos de paz e luz..
Evanir...

Menina no Sotão disse...

Nossa, poucas vezes tive essa sensação: de estar a ler a mim mesma ou parte de mim. Me confundi com partes de tua escrita e me afoguei nas lembranças de coisas minhas. Eu um dia tive medo de deixar ir ao outro e agora vou a um outro que me oferece xícaras de chá no meio da tarde e taças de vinho no fim da noite. rs

bacio