Lulu



Têm uma folha triangular ligeiramente ondulada nas pontas, firme, verde escura. Dão-se bem nos terrenos alagados, facilmente drenáveis, gostam de sol e de liberdade gostariam, se o pé não os prendesse à terra.  
E porque se dão, aceita-os ele ao entardecer naquela hora em que o dia se mistura com a noite, as plantas hesitam entre o oxigénio e o anidrido carbónico e um silenciar de pássaros se instala devagar.
Planta-se à beira do poço, o primeiro morcego atravessa o espaço entre as laranjeiras e as chaminés das casas abandonadas e o cheiro da terra desfaz-se em camadas inimagináveis, húmus, bolbos, sementes, promessas de inverno e frio.  
Devagar, passa as pernas para o lado de dentro, baloiça-as, verifica se as pontas dos pés não tocam a água, apercebe-se do contorno das paredes de rocha, do som das pedras pequeninas que arrastou consigo e ouve ao longe a voz da mãe,
 
-Não te esqueças dos espinafres!
 
Não esquece. Ficam adiados mais um pouco a esverdear sabor, depois ajudá-la-á a lavá-los, em três águas e uma gota de lixívia. Ela dirá,
 
-Podemos comê-los crus e se os espalharmos por cima de um prato de massa a fumegar, eles amaciam, cozem no próprio suco.
 
A mãe diz sempre isto, mas ele não se importa, é como se ela dissesse, as coisas valem pelo que são e somos nós que as fazemos brilhar. E é tranquilizador.
Muitas são as vezes em que não é capaz de resistir e com as mãos firmemente colocadas, roda sobre o seu lado direito e desce pedra a pedra poço abaixo. Sabe que tem três entradas secretas, uma a dois metros de profundidade, as outras duas não sabe calcular, mas estão lado a lado e possuem no topo dois arcos em ogiva. Para dizer a verdade talvez não sejam entradas mas saídas, não está muito certo e até hoje só se aventurou pela primeira delas e com uma lanterna, uma garrafa de água, um pacote de bolachas de chocolate e uma medalhinha de Santo António de Lisboa, porque perdido, o santo seria o primeiro a encontrá-lo.
Claro que tudo isto tem de ser feito na maré vaza e não ter chovido há pelo menos quarenta e oito horas, caso contrário os cursos de água e as águas do mar misturam-se e fazem subir o nível do poço e afogam-se os seres que ousaram quebrar a linha que divide estes dois mundos, o subterrâneo e o aquático.
Um dia contará o que viu nessa primeira passagem, mas hoje não, a atenção fixada num murmúrio de sons graves, ainda ao longe, ainda desconhecidos.
E de repente dois olhos enormes espreitam entre os seus pés e ele imóvel, a respiração contida, não ousa falar. Um respigar de água e em cheio na face um borrifo gelado. Os olhos brilhantes continuam a fixá-lo e lembra-se da bolacha no bolso das calças, retira-a cuidadosamente, o chocolate meio derretido, mas inteira, apetitosa. E atira-a. Os olhos ganham boca, cabeça, corpo e membros em forma de nadadeiras e num impulso ágil engole a bolacha de chocolate.
O rapaz dá uma gargalhada e bate palmas de contente, a foca imita-o e num salto, senta-se a seu lado. Ele pergunta-lhe o nome, ela ronca: Lulu, ele repara que ela tem uma ferida no dorso.
Sobre o rapaz e a foca esvoaçam os visitantes invisíveis, os que a noite traz e o amanhecer leva.
Pela janela da cozinha a mãe cantarola: jantaaar!!
O rapaz pega nos espinafres e diz, vem comigo e ela vai. Desajeitada, inábil em terra como todas as focas, os olhos e o corpo a brilhar.
O rapaz diz: é a Lulu. A mãe não diz nada. Desinfecta-lhe a ferida, esfrega-lhe o corpo com óleo de amêndoas doces e dá-lhe um beijo no alto da cabeça.
O rapaz, a mãe e a foca, lavam os espinafres em três águas uma gotinha de lixívia para terminar. Lulu come os camarões e deixa a massa e os espinafres.
Um dia contará o que viu na segunda e na terceira passagens, as que possuem dois arcos em ogiva, mas hoje não.
Ficará aqui entre a terra e o Atlântico norte a sarar as feridas e se nevar no Natal, atravessará a única passagem entre a realidade e a ficção, aquela a que apenas alguns têm acesso.

Lulu desenho a pastel de mb
inspirada em Luciano, a foca macho a quem os homens trataram das feridas





25 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Tu, tu és uma daquelas pessoas capaz de atravessar a única passagem entre a realidade e a ficção capaz de, do nosso poço, fazer sair uma Lulu ...

... a quem os homens trataram das feridas!

Bravo!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 25 de Novembro de 2011

ONG ALERTA disse...

Ficiçáo ou realidade...beijo Lisette.

Unknown disse...

Andei aqui perdido entre uma e outra realidade. Nem sei se atravessei mesmo para o outro lado...onde esta leitura amena e familiar nos transporta.

Que mais dizer de textos assim ?
Maravilhosamente bonitos e difíceis de lhes acrescentar algo mais...

Nilson Barcelli disse...

Adorei os teus espinafres... ooops... as tuas palavras.
Gostei de percorrer as imagens que foste criando na tua excelente narrativa. És uma contadora de histórias nata.
E a tua Lulu é um encanto (os teus dotes de pintora também são notáveis).
Querida amiga Manuela, tem um bom fim de semana.
Beijos.

Unknown disse...

¡Esos ojos! Entre la realidad
y la ficción.

Un beso

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

E tu és daquelas pessoas que descrevem a realidade e a ficção com tal intensidade que se misturam e navegamos nos teus textos como quem faz uma viagem por dentro do tempo.
E...os teus textos nunca me parecem compridos, são sempre pouco.

Deixo um beijinho com carinho e desejo que tenhas um bom Domingo.

Sonhadora

Unknown disse...

até no fundo de um poço o mar tem uma história para contar, que é de amor e ternura, entre homens e bichos no mais improvável dos lugares

ainda faltam duas e eu fico à espera da próxima maré vaza... até lá todas as feridas hão-de sarar e a Lulu regressará ao seu lar e contará aos seus uma história de homens de bom coração, porque ainda os há!

e o sorriso da Lulu não tem explicação, nem o meu! :)

adorei, Manuela!

um beijo

Walter

Anónimo disse...

Manuela
Difícil traçar - como se fosse necessário - por entre palavras tão bem desenhadas, a fronteira entre o real e a ficção, ainda mais decidir qual das duas preferir! A Lulu que decida - tenho a certeza que vai desenvencilhar-se magistralmente, tal como a sua criadora!
Beijinho e bom fim de semana!
Quicas

BlueShell disse...

"E atira-a. Os olhos ganham boca, cabeça, corpo e membros em forma de nadadeiras e num impulso ágil engole a bolacha de chocolate. ..."
...um dia contará...

Fiquei aqui...perdida nas linhas,,,imaginando...refletindo e...como que acordando desse sonho...te digo: parabéns...mais um texto de uma qualidade como tenho visto poucos.
Obrigada por estares aí!
Bshell

Mª João C.Martins disse...

Só quem sabe...
só quem conhece a magia que possuí a linha que divide esses dois mundo, pode acreditar que ainda existe um lugar a descobrir, onde podemos sarar as feridas.

Excelente trabalho, Manuela!

Um beijinho

AC disse...

Ah, Manuela, a sua escrita tem sempre o condão de me emocionar, de me fazer mergulhar em cenários em que os gestos são temperados por sabedoria milenar. E reconfortam, ó se reconforta...!
Obrigado.

Beijo :)

. intemporal . disse...

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. esta é a "hora em que o dia se mistura com a noite" e "as plantas hesitam entre o oxigénio e o anidrido carbónico" . o lugar onde se escuta um "silenciar de pássaros" que "se instala devagar" .

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. "as coisas valem pelo que são e somos nós que as fazemos brilhar"

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. "e se nevar no Natal," atravessaremos "a única passagem entre a realidade e a ficção, aquela a que apenas alguns têm acesso." .

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. ou serventia .

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. íssimo . feliz .

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© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Manela

não sei explicar,mas, este texto emocionou-me tanto, que as palavras morrem-me para poder comentar, um texto que acho misturado de ficção e realidade, nalgumas passagens.

gostei muito, muito.

um beij emocionado

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

em tempo!

gostei muito do desenho da Lulu que tão bem acompanha o texto.

beij

Anónimo disse...

Benditos aqueles que fazem esta passagem e assim...
com esta facilidade.

Amei a Lulu e consegui também dar-lhe alguns camarões.

Obrigada, Manuela.

Beijinho

alegria de viver disse...

Olá linda amiga

Que linda a Lulu de olhar assustado.
Vou experimentar esta receita acho que vai dar certo, e depois eu prefiro comida verde e crua.
Mãe é tudo igual só muda de endereço, por isso amo mães transbordam amor.

Com muito carinho BJS.
Tenha uma linda semana.

Anónimo disse...

Béu, béu!

Se eu fosse menina era Lulu, mas só até aos três mesinhos...

Béu, béu!

Kika disse...

Auf!

Acho que também vou precisar dos (teus) cuidados de enfermagem!

Por pouco tempo!

Auf!

Auf!

Beatriz disse...

Manuela

Que linda Lulu! E que bom estão a tratar suas feridas para que a passagem seja tão bela quanto!

beijinho

Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com

Graça Pereira disse...

Tu tens o condão de nos abrir a passagem entre a realidade e a ficção, porque tu, és das poucas pessoas que tens esse acesso...
Eu fico maravilhada junto à lareira e acredito que, das chispas do fogo, nasce a história da Lulu e vejo os olhos enormes, brilhantes, comendo a bolacha de chocolate e até sinto que ela está a meu lado, pensando admirada como chegou até aqui... Não sei se ela sabe que existe alguem capaz de transformar noites em madrugadas e de trazer até aos humanos seres invisíveis e outros menos comuns entre nós...É tão bom sonhar contigo!
Beijos
Graça

Mar Arável disse...

Aqui ficção e realidade

são um casamento de ternuras

Uma trilogia só possível
pelo génio da poeta

Mais uma bela viagem
partilhada

Penélope disse...

Um mergulho de um pensamento livre que se detalha em cada palavra escrita. Eu sempre gosto de passear nestes teus imaginários que tem muito do REAL...
Abraços

Mariazita disse...

Dizer o quê?
Fico com a sensação de que qualquer comentário que possa fazer quebra a magia de um texto de uma beleza única. Chega-se ao fim com o desejo de que continue...
É só o que posso dizer, Manuela, minha amiga.

Voltarei, sempre que possível, como explico no meu último post.

Até sempre. Beijinhos

Lídia Borges disse...

Venho só agradecer este momento de leitura... indizível de tão belo!

A sua escrita tem particularidades que me encantam. Talvez por se situar num espaço ambíguo e mágico entre a realidade e o sonho que só um poeta ou uma criança sabe localizar.


Um beijo

Petrus Monte Real disse...

Manuela,

Estou encantado com a profundidade da palavra literária e a beleza da pintura.
Transcendente,
o som do piano e o múrmúrio em tom plangente das cordas!

A integração, tão natural, do novo elemento no seio da família
é admirável.
Natal à porta!
Bom fim de semana
um abraço