marulhar



É hoje, perguntou. É hoje responderam.
Cheira  a maresia, o vento do lado do mar, o fato de banho azul, o panamá dobrado no bolso, ao sol dás um mergulho, tapa o nariz, não engulas um mexilhão.
No saco de pano, um barquinho de madeira, a vela branca de nata, de espuma das ondas, a toalha às riscas e uma forma-estrela para encher de areia molhada e sentir-se estelar.
Na conjugação perfeita entre o sol e a lua nova ou cheia, a água excede-se inundando a praia, a bandeira vermelha, os calções de banho cheios de algas, as pedras rolam num barulho seco, o mar magoado, magoa. Vazante a maré, era dessa que ele gostava. As rochas verde alface, a distância infinita entre os toldos e a borda da água, as poças, os peixes pequeninos, os burriés e a mãe distraída no ponto cruz dizia, porta-te bem, não tenhas medo, a imaginação dos perigos vive da razão inversa da sua existência. Se caíres, levanta-te, se te baterem grita, se te chamarem magriço-peito-de-ouriço, ri-te. Um dia vais crescer e engordar.
As outras mães fingiam ler, conversavam mas não tiravam os olhos dos filhos,  a dele não. Na diferença mansa entre confiar e desconfiar, aceitar ou negar, silenciava-se no alinhado e na agulha, desprendendo-o, soltando-o e ele ia.


Às dezasseis horas e quinze minutos levantou-se uma leve aragem. Barlavento é o lado de onde sopra o vento.
Cerrou ligeiramente as pálpebras, o nariz franzido, a atenção concentrada no agitar da vela, a mão direita a segurar o leme. As pernas compridas e queimadas pelo sol ajeitavam-se à pequenez da embarcação, os músculos relaxados, o prazer de balancear. Na sua cabeça a melodia de uma canção antiga, de corsários e piratas, tanta a pressa de chegar ao fim do mundo, que segredos têm as aves marinhas quando pousam nos rochedos? Era a sua voz a perguntar. Em cada porto há uma taberna escura e nas saudades de terra afogam-se em vinho os que vivem no mar, continuava o canto.
Uma gaivota sobrevoava a embarcação, da ré à proa, volteava, invertia o sentido. Vento aparente é a soma vectorial dos ventos real e induzido, era a voz do pai. Recordava-se de tudo menos do contorno do rosto e isso inquietava-o. Se o tempo é um apagador, os quadros não sobrevivem a um salpico de ausência. Ocultação, relâmpago, cintilação. Como a luz de um farol. Encarnada, o barco tem de dar bombordo à luz. Verde, estibordo à luz. Branca, a do alto mar.
Agora são cinco. A gaivota, o peixe-piloto, o barco, ele e a voz do pai. O peixe segue fielmente os tubarões e os barcos, romeiro, peregrino do seu destino.
Os faróis já se avistam no horizonte imóvel e o homem tira do bolso um lenço branco com o seu nome bordado a ponto-cruz, afaga-o, cheira-o, estremece. Prende-o à proa como se fosse um sinal e recomeça a trautear a canção pirata.


O vento sopra forte, o barco equilibra-se na crista da onda, o rapaz inspira e mergulha, vem à superfície e volta a mergulhar. Os caranguejos e as anémonas roçam-lhe os pés nus, a poça entre as rochas tem o tamanho de um universo de água e ele endireita-se, puxa o esterno para fora, faz-se grande entre os espinhos e sozinho aprende a nadar. Sete ondas fortes, sete ondas fracas e faz como a mãe, solta-o, ao barco de madeira, liberta-o do limite das pedras, da maré vaza, da infância, magriço, ouriço, vela de nata branca, espuma das ondas do mar.
A mãe junta as linhas, guarda as agulhas, dobra o pano alinhado. Sacode a toalha e envolve-o nela, esfrega-lhe o cabelo molhado, dá-lhe um beijo na testa. As bolas de Berlim deixam cair o açúcar branco e uma dentada mais forte desenha-lhes bigodes doces à roda dos lábios. Riem-se. Ela fala-lhe dos faroleiros sem medo das tempestades nocturnas, das ondas de mais de sete metros que embatem nos faróis, no ruído que vem dos quintos dos infernos onde os deuses brigam pelo domínio das águas e dos ares e dos rapazes magriços que amam barcos de velas brancas. Não falarão do rosto ausente do pai porque a sua forma é de quilha, peça forte que se estende da proa à popa e que determina o desenho de cada navio, peso e medida.
Talvez anoiteça, não faz mal, sizigía é a maré viva, influência do sol e da lua e o Verão um pedaço de espuma que mal se sopra, desliga-nos.
Ficarão ali sentados, o rapaz enrolado na toalha às riscas, a mãe envolta na echarpe leve de seda das índias. Contarão as gaivotas quietas na areia molhada, os bicos apontando o mar. O rapaz dirá, falta uma. E pousará a cabeça no ombro da mãe.

barco com faróis em fundo preto  óleo de mb


quem regressa traz sempre uma história por contar





31 comentários:

. intemporal . disse...

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. "tanta a pressa de chegar ao fim do mundo" .

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. na distância de um ápice . no alcance de um segundo . porque da periferia que percorre a linha que determina o relevo . revela.se a saudade do sangue todo ele ao peito e eleito no mais torneado dos membros . busto pouco rendoso mas abundante no mimo de uma lembrança . talvez uma partitura da memória com vista a abraçar o tempo .

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. são estas as histórias do fundo . pro.fundo . desta língua que nos é mar.e.a.mar.de.a.mar .

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. águas-furtadas na intermitência que permanece entre o fabuloso e o soberbo .

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. e eu ? .

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. eu vou dar um beijo à escritora .

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. íssimo .

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. sempre e para sempre feliz .

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Kika disse...

Auf!

Vens cá com uma pujança!

Pelo menos mostra os braços queimados pelo rebordo da frigideira!

De tanto frigires croquetes!

Auf!

Anónimo disse...

Mééé!

Na praia de que falas eu sou sagrada. Há lá tantas...

"Poça"!

Mééé!

ki.ti disse...

Quem é que abriu a porta??

Aceito o peixe-piloto, cozido se faz favor!

Petrus Monte Real disse...

Manuela,

Um encanto, este marulhar de palavras, símbolos e desenhos!
Tantos e tão belos!

Tenho um desafio para ti
no 'a partir da lua'. Compreendo, se não puderes aceitar.

Bom fim de semana
Um abraço

Linda Simões disse...

Manuela,

Quando eu crescer quero ser igual a ti...

...

Aqui está calorrrr!!!!

Muitos beijinhos aos queridos,


Linda Simões

Unknown disse...

Bom dia
Não sei comentar um texto tão bonito.
Fui lendo e sonhando.

Perdi-me nas linhas que se soltavam das velas deste barquinho...

Enterrei os pés, com força, na areia e fiquei ali, a ver se conseguia avistar alguma coisa, que nem eu sabia o que era ou como as marés e as luas podem modificar.

Luis Alves da Costa disse...

E todo o marulhar do Mundo, no rumor do Mar ao fundo

Unknown disse...

por contar ainda muito haverá, porque se em mim toda e qualquer ausência me faz doer, também ela um dia tem sempre um regressar

hoje, mais nada desejo...
apenas este marulhar de sentimentos, aos meus ouvidos a soar!

e a voz que me invade, ouço-a melhor de olhos fechados!


lindo o seu regresso, Manuela!

e linda é a pintura... parabéns!

um beijo

Walter

Laços e Rendas de Nós disse...

Enquanto lia fui dando por mim cada vez mais imóvel com receio de, até ao respirar, causar estragos nas imagens/tempos descritos.

Gostei muito! Obrigada!

Beijo

Evanir disse...

Me faltam palavras ,pra agradecer sua atenção
comigo.
Ser sua amiga é um presente de Deus na minha vida.
Agradeço a cada uma de suas visitas todas
elas me deixaram muito feliz.
Que seja abençoada por Deus nossa amizade para sempre.
Desejo um feliz final de semana beijos com infinita ternura e paz..
Evanir..

Beatriz disse...

Já fiquei uma vez contando as gaivotas num mar de rio sem fim....
Na verdade eu estava tentando proteger os ninhos das tartaruguinhas na areia....as gaivotas são muito velozes! Ao longe somente as velas brancas dos barquinhos a pescar....
Beijos e um bom domingo!!!
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com

Eva Gonçalves disse...

Sem ter ido à praia uma única vez este ano, fui hoje com esta mãe e este rapaz, agora estamos os três sentados na areia. Ela de echarpe, ele de toalha às riscas e eu de casaco de malha de algodão pelos ombros... só falta a bola de berlim!! Li no papel de mãe com um olho no livro, outro no rapaz, e no de filha, a abanar as minhas tranças molhadas a tiritar de frio,a comer um jezuíta trazido de casa :))Deve ser a última vez que vou à paraia este ano. Obrigada pela linda tarde Manuela!! :)

Anónimo disse...

Manuela,
Não é fácil pousar aqui palavras, porque as suas, às vezes, deixam-nos sem palavras. Como hoje.
Talvez tenha razão, o tempo é um apagador. Os filhos são como a luz de um farol. Iluminam a vida.
Abraço.

alegria de viver disse...

Querida amiga

Fico feliz com seu retorno.
Gostaria de marulhar com as águas do oceano até chegar aí.

Lindo texto, quem regressa traz sempre uma história, e neste caso digo e que história.

Acho que seu coração voltou mais leve e mais alegre.

Com muito carinho BJS.

Mar Arável disse...

Excelente regresso

Anónimo disse...

As saudades que eu tinha deste "marulhar"! De quando é tão bom o regresso que... "agosto" até passou depressa!
Beijinho´
Quicas

Anónimo disse...

Um regresso em pleno mergulho... na mesma escrita com o carisma de uma só, Manuela Baptista.

O medo e a saudade enfrentam-se com uma coragem maior, ardente, feita de cumplicidades e carinhos.

Bem vinda, amiga.
Beijinhos

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

O que dizer? Se as palavras se vestiram de mar...se a poeta já escreveu tudo e as mãos escreveram pedaços de sonho e aconteceu magia.
Em silêncio vou envolta neste murmúrio de mar e ondas.

Deixo um beijinho
Rosa

Mel de Carvalho disse...

Manuela, os seus textos têm sempre o poder de me transportar para lugares onde fico, ora menina magriça, ora mãe a zelar pelos meninos magriços, pelas tempestades, pelas bolas e pelas bandeiras...
depois regresso ao silêncio das gaivotas no areal, aos bicos virados para o mar - tão belos,estes contos, Manuela, tão belos.Obrigada.

Beijito daqui, onde o rio é quase mar.

antonio ganhão disse...

Um conto precioso que nos embala numa envolvência mágica. Tive hoje o meu bocadinho de praia.
O desenho,magnifico como sempre, os homens sempre precisaram de escrever nos céus para se orientarem, sempre por lá colocaram pontos finais, como faróis e estrelas imaginárias... nunca nos soltamos desses pontos de amarração.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

e quem fica saboreia esta leitura com cheiro de mar e maresia.

gostei do conto e das imagens...

beij

Virgínia do Carmo disse...

Manuela, sempre tão bom ir e regressar consigo nestes belos excertos de vida e alma.

Obrigada por tantos momentos preciosos

Beijinhos

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Bravo nos dois, neste teu blogue e não menos nos Tesouros ...

... e que tesouro!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 30 de Agosto de 2011

Graça Pereira disse...

Tinha de ser o mar a trazer-te de volta...E na maré vazante tiveste companhia!Acredito que a senhora tenha bordado a ponto cruz, o barquinho de madeira e a vela branca de nata...Talvez o vento de barlavento tenha trazido um pouco de frio a todos...Mas que importa? Quem tem pressa de chegar ao fim do mundo, aguenta tudo!Ou seria a pensar nas Bolas de Berlim...Huuuum deliciosas para o fim de verão (quase)! E nesta noite de maré viva, ficarei com eles a contar as gaivotas que têm tanto para contar...
Já tinha saudades das tuas belissimas hitorias.
Beijo
Graça

Mª João C.Martins disse...

Há barcos que jamais deixam de navegar em nós.
Como os seus contos, Manuela, que permanecem a marulhar cá dentro.

Um beijinho

PS - Lindo o barco que pintou, com o farol por perto!!

Graça Pires disse...

Lindíssimo texto, Manuela. Reportou-me a outros tempos, a outros lugares, a outra idade. E estava com o coração aflito, como nessa altura.
Um grande beijo.

. intemporal . disse...

.

.

. até nas palavras . há pastores e há rebanhos .

.

. íssimo feliz .

.

. pastora das palavras .

.

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Rogério G.V. Pereira disse...

Fizeste-me lembrar
que a mim
quase sempre me faltava
uma gaivota na contagem
e, também,
reclinava a cabeça
no ombro (ou colo?)
de minha mãe

Um regresso que (quase) fez esquecer a ausência

Branca disse...

Como é bom ter o mar nas suas palavras Manuela e sentir-lhe o cheiro a maresia que se desprende das algas e se prolonga neste Setembro...

Gostei destes tempos de praia, que nos trazem à memória outros tempos lá longe numa infância dourada...

Bom regresso, lindo regresso.
Beijos

manuela baptista disse...

um abraço

pelo vosso marulhar!