I - do que não se vê



“Sou o primeiro a chegar depois de tantos terem já partido”. Lembra-se de dizer isto em voz alta. Não, média voz, talvez. Grave. Intensidade, tom.
A importância das características da sua voz seria nula como a visibilidade em dias de nevoeiro, não fosse este seu hábito de analisar todas as coisas, de as decompor, o todo em partes e em cada parte construir muitas outras.
Uma espécie de compostagem orgânica que o mantinha atento à singularidade que o rodeava.
O produto final, o húmus, alimentava-se de si e à superfície, à tona, depositava os sedimentos que o magoavam.
Eram três, os rios. Dois, subterrâneos, não se deixavam ver. Poderiam ser brancos, azuis ou pretos que ninguém saberia, mas a sua existência tinha sido comprovada há milhões de anos pelas águas que jorravam a jusante e que transportavam a marca das rochas e da terra profunda.
A nascente do terceiro ficava para lá dos montes e era para lá deles que o seu leito escorria. Tinha sempre saudades deste rio, calmo, agitado, traiçoeiro, perigoso de navegar, bom de mergulhar. Era tudo num só rio.
As suas pernas ficam agora mais curtas, puxa os calções para que não escorreguem pela barriga, treme de frio ou de medo, treme sempre e os irmãos mais velhos gritam, medricas! Mergulha, tens de mergulhar!
As regras estabelecidas entre eles eram duríssimas de cumprir. Entravam os três em fila, em escada, o mais velho à frente seguido do irmão do meio, no fim, ele, o mais novo, o mais baixo, o mais assustado, o mais choramingas. Tem medo das sombras nos corredores da casa, sabe dos perigos que rondam o poço lá fora, acredita que não é permitido pisar as formigas de asa sob pena de lhe picarem para sempre o coração.
Depois quando a água lhe chega ao queixo e os joelhos batem um no outro como se fossem apenas um, dão as mãos fazendo um círculo. Levantam os braços inspirando profundamente, contam mentalmente até três e mergulham e aguentam o que o mais forte deles aguentar. As mãos de um sustentam e apertam as mãos do outro e não admitem desistências. São a confluência de uma contradição.
Um dia sentiu-se ir, uma dor no peito, um chamamento do rio no seu ouvido, um leito macio de algas e peixes. Mas não foi. Ao jantar o pai percebeu a palidez do rosto e o cansaço das pernas e fez perguntas e ao pai não se mente, não existe pacto que valha uma mentira. O mais velho apanhou com o cinto e as raparigas choraram, pai! não lhe bata e o pai chorou também.
Esse era o tempo da eternidade dos dias e das noites, como se a imensidão do céu de Agosto se dividisse e ele e os irmãos ficassem com um pedaço maior.
Abrandou na curva e esticou o braço esquerdo para fora da janela do carro e abriu os dedos. Era perigoso, sabia, quase como não respirar.
Cheirava a terra e podia imaginar o calar dos pássaros ao crepúsculo e aquilo que sentia e que não se deixava ver. E disse-o em voz alta, grave.


esta é a página primeira de um conto, que pode nem terminar



explicavelmente as pinturas não são minhas!





25 comentários:

Eva Gonçalves disse...

Preferia comentar no final do conto, mas visto que ele pode nem acabar...:) vou comentando. Se é grave, há um prenúncio do desfecho... um chegar que traz um partir. Gostei da imagem do braço esquerdo de fora da janela do carro, e da mão aberta tentando agarrar o momento, aprisionando os sentidos e as memórias, a vida... Espero que o acabes :) Beijinho

Unknown disse...

Parabéns pela forma bonita de escrever juntando ficção com a realidade e deixando-nos a navegar nesse mar onde a imaginação é senhora e rainha.
Li e reli e no final - a conversa com o pai - vai "dar molho"...
Pois ...aconteceu a muitos rios rebeldes e precipitados...

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


A Eva Gonçalves, acutilante como é, tem toda a razão, por isso, reservar-me-ei para o fim do conto e mesmo que o conto não tenha fim ...!

Posso, no entanto, dizer que os pormenores das pinturas e todo o enquadramento ficaram maravilhosos!

Quanto à tua escrita ... já sabes!!!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 24 de Junho de 2011

Rogério G.V. Pereira disse...

Sei que os rios de que falas (já) não existem: Sei que as regras hoje são mais lassas, menos exigentes e arriscads, sem perda da necessária cumplicidade. Sei que os pais (já) não choram por bater nos filhos, pois os que chorariam não batem e os que batem (já) não vertem lágrimas por o fazer. Sei tudo isso e do sem sentido de enfrentar desafios de quase estar sem respirar. Sei tudo isso, mas também sei que o que me contas poderá ter acontecido e é quase pena não haver condições para voltar a acontecer...

Unknown disse...

afigura-se-me um tempo, (um outro tempo), em que os pés impressos no barro e um sol castigador sobre os ombros, faziam o caminho - um caminho desafiador, com regras para cumprir, porque os precepícios estão de ambos os lados e não há grandes margens para erros...



mas, só uma ponta do véu foi levantada... do que não se vê, vou esperar, para ver! :)

o mistério já anda no ar! :)


beijinho, manuela!

Walter

antonio ganhão disse...

Uau! Dos rios profundos alimentamos a vida, como a torrente invisível de onde jorra esta escrita, a jusante de todas as memórias, das vividas e das inventadas, transportando as marcas profundas do nosso ser.

Diz aqui que continua...

. intemporal . disse...

.

.

. do húmus profundo rente à superfície da terra prometida .

.

. no tom e no dom . como tantas são as vezes que os caso .

.

. e que aqui se juntam ao artista visual e à artista das palavras . como sinónimos da mesma anáfora .

.

. ambos . à tona d`água .

.

. ou "rumo à maré próxima" . onde me acrescento .

.

.

. íssimos . felizes .

.

.

Kika disse...

Auf!

Esta é uma terra manhosa!

Até que se vislumbre um simples croquete é preciso patapear patapear e patapear!

Irra, que cãoseira!

Auf!

Auf!

Lídia Borges disse...

Um conto que promete...
Desta primeira página levo o enlevo da qualidade na escrita e na beleza da mensagem.

L.B.

Unknown disse...

:))

já não falta muito para o homem parar o carro, pois não?

pelo barulho do motor, o carro já deve deve ser novo...

alegria de viver disse...

Querida amiga

Os sonhos alimentam o nosso coração. É por meio deles que o Universo conhece nossos desejos e os transforma em realidade.
Vou ficar neste sonho até que a continuação aconteça.

Com muito carinho BJS.

Nilson Barcelli disse...

Em crianças, todos nós assumimos riscos perfeitamente desnecessários.
Com ou sem a boa vigilância dos pais. Com ou sem cinto...

Gostei do teu meio conto.
A tua narrativa tem fôlego para muito mais... até para o romance.

Querida amiga Manuela, boa semana.
Beijos.

Graça Pereira disse...

Manela
Não sei se, pelo menos um dos rios, chegará ao mar... Vou vogando à superfície (não sei nadar...)com todos os meus receios, angústias e interrogações...Alimento-me do húmus que são as tuas palavras e acredito que este conto terá um fim...nunca previsível, tal como a vida! Embalo-me de música feita de pássaros e de chuva e sinto que há uma seiva nova a correr por estes rios, neste tempo verdadeiramente pleno!
Beijo
Graça

Virgínia do Carmo disse...

Manuela, espero que leve a sua escrita longe, para que outros, como nós, se comovam e assim cresçam, humanas e depuradas!

Vou querer ler tudo:)

Beijinho grande e a minha admiração

Virgínia do Carmo disse...

Deveria ter escrito "humanos e depurados"! Fica a correcção :))
Beijinhos!

manuela baptista disse...

humanos e depurados somos, Virgínia!

obrigada

manuela baptista disse...

Eva
Luís
Jaime
Rogério
Walter
António
Paulo
Fézada
Lídia
Rufina
Nilson
Graça Pereira
Virgínia

grande viagem esta, não?

um abraço

manuela

Branca disse...

A vantagem de chegar tarde é que em vez de ficar na expectativa dos restantes comentadores vou já para a parte II, :)).
Esta parte I afigura-se-me como um regresso ao passado do Homem que volta no seu carro às raízes da terra onde cresceu. Será que adivinho? Vou já ver.

Beijinhos
Branca

manuela baptista disse...

Branca

...

ju rigoni disse...

Há sempre algum risco no resgatar o que de mais significativo se guarda na memória...

Lindo, Manuela!

Um beijo, querida. Adoro seus escritos. Inté!

Glorinha L de Lion disse...

Sempre viajo ao pôr meus pés aqui....beijos,

manuela baptista disse...

Ju,

Glorinha

obrigada!

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Manela

que excelente narrativa...

vou ler a II parte.

beij

Mª João C.Martins disse...

Todos os rios têm água doce, filtrada na rocha, a jorrar de onde não se vê.

E é do sedimento que se alimentam os nenúfares. Beleza e grandeza no sentido vertical da transformação.
Comoveu-me a tremura dos joelhos... vá lá saber-se porquê!

Continuo a leitura do conto...

O meu abraço, nesta admiração rendida pela sua escrita.

Anónimo disse...

Sabes amiga Manuela?
Sinto-me quando se faz batota ...

Acidentalmente li o fim do conto e não posso reverter o acontecido.

Tenho um nó enorme na garganta, talvez um dia te fale mais de mim, agora é irrelevante...

"acredita que não é permitido pisar as formigas de asa sob pena de lhe picarem para sempre o coração."

Os mais fracos, débeis, por o serem, simplesmente, ou meramente por serem os mais jovens... são os mais sensíveis!

Chorei quando o pai chorou com as irmãs e senti-me deitada na cama de algas e peixes.

Obrigada
Beijinho