Em alguma parte da casa uma janela bateu. Lembra-se de pensar “o gato pirou-se outra vez…” e de se ter virado para o lado esquerdo.
A janela continuou a bater e sentiu uma súbita vontade de comer pão quente com manteiga. O estômago roncou de uma forma obscena e não havia nada a fazer, levantou-se, enfiou os chinelos, vestiu qualquer coisa macia e no bolso guardou a lanterna de duas pilhas gastas que apenas funcionava quando lhe batiam. Lá fora, o gato assanhado guinchava para um inimigo real e abominou a ideia de um dia o ter ensinado a abrir as janelas e a sair em liberdade. Ela escolheu a porta e num silêncio repentino entrou na quietude da noite.
O gato calara-se, o inimigo invisível. Inspirou profundamente o ar húmido, o aveludado dos líquenes, o roçagar das asas de um mocho, que não se inspira, expira. A luz do candeeiro público apagou-se como sempre fazia nas noites de insónia em que alguém passava por perto, mas a claridade ténue era suficiente para enfrentar a rua e o passeio. A lanterna continuava no bolso macio e ela colou-se às paredes das casas até encontrar o muro das pedras soltas. Era fácil saltá-lo, há anos que o fazia e como à medida que o tempo avança as coisas ficam ainda mais soltas, as pedras não fugiam a este assomo de regra. Soltamo-nos porque não temos nada a perder, como o gato.
Estava ali, no lugar onde sempre estivera, a árvore das gralhas e dos gritos. Enorme, sem folhas. Sentou-se numa pedra baixa, as pernas cruzadas, a cabeça presa à invenção de um mito, a sua invenção. As gralhas faziam ninho naquela árvore. Não eram gralhas, eram corvos. Os gritos, a raiva, um desgosto, tinha de ser feito nas noites de lua nova, sem ninguém saber. O grito seria longo, agudo, aterrador. A paz viria depois, ou não. Há duas gerações que assim acontecia. E gritou. Os pássaros agitaram-se, os morcegos descobriram o caminho das chaminés abandonadas e o homem disse:
- Lamentável… - e olhou-a desconfiado.
- Desculpe… - deu um salto e levantou-se, o homem também - não sabia que estava aqui, gritei…vim buscar o gato… e engoliu as palavras percebendo que a resposta não era muito convincente. Sentiu-se infantil e ridícula, em pijama, camisolão com bolsos e chinelas de praia, para não falar na lanterna moribunda.
-Percebo – respondeu o homem – pois eu perdi o cão, Siegfried.
- Nome engraçado, gosta de ópera? – perguntou ela.
- O cão? Adora! – o homem deu uma gargalhada que fez abanar a árvore. Caíram alguns gritos mas eles não deram por isso.
O estômago roncou mais uma vez e ela disse:
- Estou com uma fome…
Sentaram-se, cada um na sua pedra. Ele tirou do bolso do casaco um chocolate Coma com Pão e comeram, sem pão. Lembraram-se das caixas quadradas e de uma espécie de caneta de metal que se espetava nos orifícios redondos. Era a sorte. Escorregava uma bolinha preta e o chocolate era minúsculo; dourada e era o maior, o de leite, Regina. Entre os dois, o Coma com Pão. Bolinha amarela, azul ou verde. Neste particular não se entenderam.
Ele falou-lhe da árvore dos corvos e das noites de insónia em que fingia procurar o cão, pois o cão não se perdia, sabia sempre onde é que ele estava, se assim não fosse, não seria cão. Ela contou-lhe da árvore das gralhas, deitou fora a lanterna e disse, a dor é um grito. No crepúsculo a chuva era uma cortina mansa.
Siegfried surgiu do escuro, a língua de fora, a cauda a abanar e deitou-se aos pés do homem. O gato já tinha regressado a casa.
árvore de mb, inspirada em "Study for the grey tree" de Piet Mondrian
40 comentários:
A cor da noite. Os ruídos da noite. O eco dos dias em que nos perdemos a procurar alegrias e encontros sob um qualquer pretexto.
As árvores cúmplices de tudo...
Um grande beijo, Manuela.
MANUELA BAPTISTA
Cão com dono
gato com casa
árvore uma brasa
encontro com asa
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 20 de Maio de 2011
Manu.
Boa noite querida, esta árvoreesta parecida com as que tenho na praça em frente a minha casa, o gato me lembra uma pessoa que conheço, fantástica esta maneira que tens de encantar na poesia de teus contos. Logo, logo ficarei sem ter o que dizer, mas ainda podemos dispirocarrrrr.
Beijo e um fim de semana cheio de alegrias iguais as que você nos dá aqui.
Querida amiga
Sua narrativa é maravilhosa, o poder de um gato.
Acabei sentada junto com os personagens, confesso que fiquei de olho no chocolate com pão, faz tempo que não como.
Bom fim de semana, com muito carinho BJS.
Também fiz esta viagem, também eu soltaria um grito se encontrasse uma árvore que o acolhesse. Lembro-me da caixa das bolinhas coloridas que davam prémio... como se pode hoje viver uma infância? Já não existe nada, tudo acabou, consumido na noite.
Em psicologia existe um teste que se faz a partir de uma árvore desenhada. A tua coloca-te no futuro, mas sendo uma obra de arte não lhe podemos confiar as nossas interpretações. Talvez ele só exista para acolher os nossos gritos.
Com o tempo soltamo-nos porque não temos nada a perder...e no crepúsculo, podemos acabar por ter sorte...a tal que me lembro bem de tentar, espetando a espécie de caneta nos buracos das tais caixas quadradas para saír o chocolate regina, pequeno, mas um luxo e delicioso como estas histórias Manuela:))O siegfried tinha bom gosto! :) beijinho grande
Muito lindo Manuela, "a dor é um grito" E sabe mesmo bem gritar assim debaixo da árvore dos mitos e melhor em noite de lua cheia, que é sempre uma companhia. Tem uma árvore dessas atràs do muro, ao lado de sua casa? Eu também quero.
Adorei a lembrança da caixinha quadrada com as bolinhas para furar.
Onde moro agora há um estabelecimento que ainda tem dessas caixas, há muito que não as via e foi uma delícia para mim voltar anos atràs e fazer um furinho, saiu-me o chocolate pequenino, :))
E a chuva é sempre "uma cortina mansa", adoro chuva como "os malucos".
Beijinhos
Branca
bocados de vida que a manela constroi narrativas escritas com mestria.
e o cão que adora ópera...
e o gato que se regressa ...
e a dor que é um grito....
e as árvores azuis...
gstei tanto!
bom fim de semana!
beij
A dor é um grito, muitas vezes de liberdade, de vida que chega.
Beijocas de saudade
Linda Simões
é esta a árvore de todos os gritos do mundo, por isso é tão ramificada...
e nos seus milhares de galhos, os absorbe a todos, transformando-os num só grito, pela liberdade, pela paz, pela quietude das almas nas noites de insónia...
um beijo, Manuela!
Walter
Manuela, encontrei-te algures por aí numa réplica [roubei esta palavra de um espaço amigo, não gosto de dizer comentário - que me soa a: olá, passei por aqui, até amanhã... -]
... dizia eu, encontrei-te, tocou-me essa réplica, colou-se aqui na pele, por ser sincera e não resisti a passear até aqui!
... leio sempre "quem sou", quando chego a qualquer lado, por vezes não tem significado, outras tem-no enorme, que foi o caso, então entrei..., li este conto entre lágrimas, porque acreditei no "quem sou", tendo já encontrado pelos meus caminhos todas as "casas" com ou sem portas e janelas, humildes ou altivas e sábias por onde foste "roubando" os "sinais" para este conto, onde, porque valorizo e amo as palavras [que para mim são como gente, boa ou má] me senti totalmente embrulhada...
... depois..., depois Wim Mertens, Humility (uma paixão) :)))
Extraordinário, como conseguiste reunir tudo ,quanto eu precisava nesta manhã aqui, neste paraíso de tranquilidade, beleza e sabedoria.
Parabéns Manuela, não apenas pelo teu saber contar um conto, mas porque se pode olhar-te nos olhos e ler-te por dentro.
Beijo e abraço.
Maria deOliveira.
Não faço ideia como é que imaginas os teus contos, mas a verdade é que sendo originais na forma (têm a tua marca) e tendo um conteúdo tão inusitado, acabam por ser magníficos.
Gostei muito, como é óbvio. Parabéns pela criatividade e talento que revelas a cada texto que publicas.
Bom Domingo.
Beijos.
Há sempre uma árvore imensa que acolhe os gritos e as noites de insónia. Uma árvore que cresce, ora nua, ora vestida de sonhos e caminhos, por onde trepam cães e gatos à procura do verde que amansa os olhares de solidão.
E há contos como os seus, Manuela, que delicadamente, nos proporcionam grandes viagens para dentro dos ramos.
Um beijinho muito grande
Walter
peço-lhe desculpa pela minha distracção
é a sua, a árvore de todos os pássaros, teatro de sombras chinesas
e não precisou de Mondrian, para o inspirar...
um beijo
manuela
Maria
obrigada pela sua réplica comovida!
um beijo
manuela
Auf!
Gosto particularmente das árvores!
Sabes, dão-me jeito e nunca preciso meter a moeda...
Quanto à cor, sou daltónico, como pensas!
Auf!
Auf!
Fézada
ainda agora te enfiei no pólo
e já estás aqui outra vez!
eu sei que não gostas de ópera...és mais Bob Marley
cão bom!
Manuela, esta tua cabecinha onde dormem corvos, mochos, gatos e homens é capaz de nos levar para dentro de nós mesmos, numa viagem de tal modo intensa que me senti árvore...beijos,
Manuela
"A paz viria depois, ou não", fica a dúvida, talvez, porque "a dor é um grito" e permanece, sim, entre as lembranças de momentos assim, estilizada, às vezes, mitificada, demasiadas! Entre ramos... sem folhas!
Beijinho
Manela
Gostava que á noite - malditas insónias - as árvores fossem azuis assim ramificadas como as tuas, onde pudesse pendurar as minhas mágoas e os gritos que dou...sem som! O meu gato não foge, acompanha-me no vai vem do passeio nocturno e já não sei se sou eu que páro ou é ele que comanda a marcha. Gosto mais dos corvos do que das gralhas...ficam quietos e respeitam o nosso grito - o meu - porque não tem som.
Que pena não encontrar alguem que me dê chocolate com pão ou sem ele.
Adoro as tuas histórias, onde a fantasia dá as mãos ao real e...tudo fica tão MÁGICO!
Beijo
Graça
Sempre uma bela história Manuela!
Árvore já fui....talvez em outra vida....
Beijinhos
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
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. porque " à medida que o tempo avança as coisas ficam ainda mais soltas " .
.
. ou . talvez e até . esparsas .
.
. íssimo . sempre sempre feliz .
.
.
talvez e até.
seja esta sempre a sua casa
habitante não secreto, bem vindo entre os bem vindos
silencioso ou falante
a quem devo o fundo negro, onde a cor dos meus riscos brilha,
e um e mais outro por.maior
pormenor que é tanto, para quem sabe olhar
um beijo feliz, intemporal.
manuela
PREPARE SEU CORAÇÃO,VENHO COMUNICAR O FALECIMENTO DE RENATA FARIAS, AFILHOTA MINHA,ESTOU COM O CORAÇÃO EM FRANGALHOS
RICARDO CALMON
a tua Grande Viagem, começa agora... até já Renata!
Walter
Manuela,
Não posso crer no que se está a passar...cheguei há pouco de uma urgência hospitalar, felizmente não grave e quando abri o Brancamar, depois de ir ao correio olhei para a Renata e foi o primeiro sítio por onde passei, apeteceu-me escrever algo sobre o meu dia e o texto dela sobre o tempo e disse-lhe que foi um tempo bom aquele em que estive lá, mal eu sabia que não o leria, de lá cliquei no seu sítio e abro os olhos de espanto, vou a correr ler a sonhadora, uma amiga que lá estava entre os comentários e descubro a verdade que aqui me deixou incrédula. Há poucos dias perdi outra amiga da blogosfera, a Fernandinha que se dedicava à fotografia e foi dos primeiros contactos que tive por aqui, mas a Renatinha, tão doce, tão viva, que há poucos dias brincava comigo, não posso crer, estou profundamente triste, os olhos rasos de água, num dia que foi todo ele cheio de emoções, um dia que podia ser dos mais felizes da minha vida, mas tão misturado de tudo. Não sei porque ela me chamou ao sítio dela mal cheguei...mas nunca vou esquecer os últimos comentários que trocamos sobre os nossos filhos.
Beijos Manuela, deixo-lhe o meu abraço amigo porque sei que eram muito ligadas e eu fico tão desolada.
Branca
Cada dia que passamos por aqui ficamos perdidos sem saber se abrir a janela e sair ou se ficar no silêncio das paredes adormecidas.
Uma escrita transbordante de imagens que se desdobram em roupagens leves e um escurecer das noites procurando algo com vida.
Bonito esse saltar o muro, sem medos, e encontrar alguém que está na mesma situação e oferece um chocolate para comer com pão.
Agradeço as visitas que tem feito ao lidacoelho. Bem haja.
ruídos da noite
inconfundíveis, fico
agarrada ao que amo
momentos companheiros, almas livres... raízes de amor
árvore onde sinto renascer
a brisa do vento
luz de um abrigo
e eis que chega, o dia...
beijinho grande para si Manuela.
dulce
.
.
. ""Quando uma árvore é cortada ela renasce em outro lugar. Quando eu morrer quero ir para esse lugar, onde as árvores vivem em paz." .
.
[Tom Jobim]
.
.
.
.
. por renata .
.
.
Estou na Irlanda, rodeada de muitas
arvores e corvos...tambem chuva,
vento e sol, uma grande mistura...
Catedrais lindas onde sinto uma
grande serenidade.Estou para descansar fisica e mentalmente e
nao ouvir falar de eleicoes.
Mas um destes dias vou ter que
regressar.Aqui, apesar do FMI ter
entrado, ha menos politica nas
conversas e na telvisao.
Um beijinho
Irene
"Soltamo-nos porque não temos nada a perder, como o gato."
É muito por ai, Manuela. O avançar dos dias confere a cada um de nós uma leveza de pedras por onde gatos e cães, de razões e propósitos seus, se esgueiram na noite. Partilham a luz das suas memórias, comidas com pão, sem pão, e no pão que o diabo amassou ...
Dizer-lhe que são ESPECIALÍSSIMAS as suas histórias? já disse de todas as maneiras que sei. Digo de novo: bem-haja....
beijos daqui, saudades suas,
Mel
PS: a minha gata gosta de Bach ... são gostos :); o cão morreu de velho... nunca lhe perguntei que música preferia...
Cheguei na hora do grito ... coisa que nunca fiz
mas devia! Sinto que devia...
Amiga Manuela, o conto é um sonho para sonhar docemente. Esse encontro, o chocolate, os corvos, o muro e árvore despida.
Mal entrei doeu-me a alma.
Segui e li o seu cometário... e agora? Será mesmo que um dia "no meio dum outro mar" a vamos encontrar?
Quem me dera acreditar.
Beijo
Ná
Querida Manuela, linda homenagem à Renata. Estamos todos muito tristes... mas como a querida Ná, tb penso assim...quem me dera crer que um dia nos encontraremos em outros mares...Que fique a lembrança! beijos,
tudo é mais claro
à noite
Olá Manuela
ADORO seu jeito de escrever...histórias delicadamente contadas!
E o gato pródigo sempre à casa retorna...
Beijinho
Bia
Manuela querida
Que a Renata floresça na terra das pessoas floridas...
Bia
Mais um conto belíssimo e pleno em significados que falam à alma. Bom que se tenha uma árvore...
Quanto à Renata, linda a sua homenagem. Não a conheci, mas percebo o que representou na vida de cada um de seus amigos pelo modo carinhoso com que falam dela.
A você e a todos que a conheceram, meus sentimentos. Bjs, querida. Inté!
se esta fosse a árvore da vida
eu teria aqui a minha obra-prima
obrigada a todos
manuela
A árvore das gralhas
Sótão de inquietações sem rótulo
A árvore dos gritos
Resquício de fios por achar...
Beijo :)
obrigada AC!
um beijo
manuela
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