Não sabiam enfiar uma linha branca numa agulha prateada, nem o que fazer com elas se por um acaso as encontrassem.
Quando o clima começou a mudar não se angustiaram, não se entristeceram, aceitaram o frio das manhãs e o calor das noites e se alguém mais descontente pressagiava desgraças mandavam-no calar. Os planetas cinzentos e obscuros tinham engolido os homens cinzentos e obscuros e desapareciam todos os dias mais um pouco, até ao apagamento total, como quem se desliga daquilo que lhe faz mal.
Os animais extintos cuja memória permanecia fechada em enormes caixas nos museus de história natural, agitaram-se dentro das mesmas, osso contra osso, pena em cima de pena, ácidos, núcleos, crânios, reconstituíram-se lentamente e dos livros guardados nas poeirentas prateleiras, podíamos ver a curiosa e escorregante Alice e um Raphus Cuculatos acabado de criar.
As professoras entediantes, que pronunciavam erradamente muitas palavras, tal como prontus, uma palavra latina que as suas próprias professoras lhes tinham ensinado apenas pelo exemplo, que é de facto a melhor forma de ensinar, torciam os narizes gordos e mal implantados no maxilar e diziam tolices que há décadas ouviam dizer.
Não sabiam quem era Alice, nem gostavam das meninas que usavam capas encarnadas e eram ingénuas como pombos sempre à espera de milho. Adoravam fichas, grelhas, quadrados, ponteados e computadores pequeninos, que guardavam na bolsa do batom e da base ultra-hidratante com um ligeiro toque de veludo queimado só para fingir que tinham ido às Antilhas.
E os mais novos deixavam-nas falar. Possuidores de um outro saber, esquecidos das réguas e dos esquadros mas capazes de atravessar uma cidade à velocidade de um olhar.
As suas casas eram altas e coloridas, com enormes telhados inclinados que nunca metiam água, nem sob a mais temerosa tempestade e de cada janela viam a cidade das torres debaixo do mar, onde habitavam os animais marinhos, que já não eram peixes, flor, batráquios, moluscos, tubarões ou anémonas.
As cordilheiras das profundidades sombreavam a nitidez dos oceanos e os ouvidos humanos eram perfeitos no entendimento da linguagem das baleias azuis, não extintas, não em perigo, companheiras dos ursos polares, brancos, mansos.
As pessoas felizes conheciam o desalinhamento dos planetas, a pequenez do universo estelar que os seus avós julgavam infinito e que se tinha revelado surpreendente, pois quanto mais o descobriam, mais limitado ficava.
Quando o clima começou a mudar não se angustiaram, não se entristeceram, aceitaram o frio das manhãs e o calor das noites e se alguém mais descontente pressagiava desgraças mandavam-no calar. Os planetas cinzentos e obscuros tinham engolido os homens cinzentos e obscuros e desapareciam todos os dias mais um pouco, até ao apagamento total, como quem se desliga daquilo que lhe faz mal.
Os animais extintos cuja memória permanecia fechada em enormes caixas nos museus de história natural, agitaram-se dentro das mesmas, osso contra osso, pena em cima de pena, ácidos, núcleos, crânios, reconstituíram-se lentamente e dos livros guardados nas poeirentas prateleiras, podíamos ver a curiosa e escorregante Alice e um Raphus Cuculatos acabado de criar.
As professoras entediantes, que pronunciavam erradamente muitas palavras, tal como prontus, uma palavra latina que as suas próprias professoras lhes tinham ensinado apenas pelo exemplo, que é de facto a melhor forma de ensinar, torciam os narizes gordos e mal implantados no maxilar e diziam tolices que há décadas ouviam dizer.
Não sabiam quem era Alice, nem gostavam das meninas que usavam capas encarnadas e eram ingénuas como pombos sempre à espera de milho. Adoravam fichas, grelhas, quadrados, ponteados e computadores pequeninos, que guardavam na bolsa do batom e da base ultra-hidratante com um ligeiro toque de veludo queimado só para fingir que tinham ido às Antilhas.
E os mais novos deixavam-nas falar. Possuidores de um outro saber, esquecidos das réguas e dos esquadros mas capazes de atravessar uma cidade à velocidade de um olhar.
As suas casas eram altas e coloridas, com enormes telhados inclinados que nunca metiam água, nem sob a mais temerosa tempestade e de cada janela viam a cidade das torres debaixo do mar, onde habitavam os animais marinhos, que já não eram peixes, flor, batráquios, moluscos, tubarões ou anémonas.
As cordilheiras das profundidades sombreavam a nitidez dos oceanos e os ouvidos humanos eram perfeitos no entendimento da linguagem das baleias azuis, não extintas, não em perigo, companheiras dos ursos polares, brancos, mansos.
As pessoas felizes conheciam o desalinhamento dos planetas, a pequenez do universo estelar que os seus avós julgavam infinito e que se tinha revelado surpreendente, pois quanto mais o descobriam, mais limitado ficava.
Possuíam os dedos indicadores e os polegares extremamente desenvolvidos e as orelhas eram ligeiramente pontiagudas, pois a audição era um sentido maior. Os pais ouviam sempre o chamamento dos filhos mesmo antes de estes serem gerados e o reconhecimento da voz de um ser amado era tão fácil como trincar uma tangerina.
Era na pulsação que diferiam dos seus antepassados, os corações mais leves tinham a configuração de uma romã e batiam ao ritmo da rotação do eixo das terras.
Não sabiam enfiar uma linha branca numa agulha prateada porque não precisavam de coser.
Não sabiam enfiar uma linha branca numa agulha prateada porque não precisavam de coser.
E nas noites quentes em que o mudado céu era tão escuro, as estrelas continuavam a brilhar como sempre o tinham feito na memória dos homens.
27 comentários:
MANUELA BAPTISTA
A cidade das torres debaixo do mar foi no que se transformaram as cidades quando estas se desencantaram do seu estar ...
Crescentes, de um campo pequeno transfiguraram-se num grande e colorido arraial onde, ressuscitando, a arena redimiu todos os mortos!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 25 de Fevereiro de 2011
Manuela, que mundo maravilhoso! amei,bjs
agora sei que o buraco de uma agulha prateada, não tem apenas uma única função - a de fazer passar através dele uma linha - pode ser também uma minúscula janela da memória, por onde podemos espreitar um universo maravilhoso e singular...
o seu, Manuela!
beijo
Walter
.
.
. as pessoas felizes conhecem o des.conhecimento do mundo que sendo senso é comum .
.
. conhecem a osmose de um aprendiz . que sendo ser é raiz .
.
. conhecem a simbiose de uma vivência em intimidade .
.
. conhecem a meta.morfose susceptível em qual.quer idade .
.
. des.conhecem porém a miose .
.
. porque não há dose que não se possa des.dosear .
.
. um .
.
. dois .
.
. três .
.
. íssimos felizes .
.
.
...
Como diz o Walter,pode ser uma minúscula janela da memória
onde torres
janelas
agulhas
recordações
se encontram
e sabem
ser felizes
olhando da janela
ou do mar
ou do trem da vida
...
Beijoquinhas
E nas cidades das torres debaixo do mar, há florestas de anémomas e jardins de cavalos- marinhos?
Um beijo com sabor de final de Fevereiro
Filomena
O encantamento e a fantasia ficam em mim... depois de devorar esta escrita, de ver os castelos e as torres submersas no mar e de me imaginar a enfiar uma linha branca numa agulha prateada...
Será que eu saberia o que fazer com ela se por acaso a encontrasse???
Obrigada amiga Manuela, por tanta beleza.
beijinho
Ná
memórias no fundo do mar, qual atlantida encantada.
beijo meu
Excelente texto, querida amiga. A tua narrativa é cativante. Gostei imenso.
Boa semana, beijos.
Mudam-se os tempos, mudam-se as realidades!
bj
Imagino essa casa alta e colorida, com ou sem telhado inclinado, mas onde a água não inunde a memória dos homens. Dela, vejo o tempo, carregado de exemplos, onde tanto gosto de aprender e do bolso onde bate ritmado o meu coração, tiro este texto, escrito por si Manuela e, acho que me falta agulha e linha para pespontar a vida desta forma tão bela.
Um beijinho de enorme admiração.
Manuela
Até meu coração ficou mais leve depois de ler aqui...
E ainda consigo ver as estrelas brilharem além das nuvens...
Beijinhos,
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
Mergulhei com prazer nesse mundo singular da sua poética escrita.
Grande prazer estar aqui e poder ler seus belos textos.
Bjs, Manuela. E inté!
A sua imaginação cria imagens poderosas. Os meus parabéns.
Tem razão quando a vida muda, não vale a pena angustiarmo-nos, há que aceitar o frio das manhãs e o calor das noites, ou o inverso, há sempre que agir e procurar desalinhar os planetas.
Bjs.
Manuela, lê-la é, infalivelmente entrar num mundo mágico onde o amor está em todas as suas formas, sempre presente. O amor ao outro, ao semelhante e ao diferente.
O “ouvir o outro…” o que nós, formadores, chamamos pomposamente “escuta-activa”…
“as orelhas eram ligeiramente pontiagudas, pois a audição era um sentido maior. Os pais ouviam sempre o chamamento dos filhos mesmo antes de estes serem gerados e o reconhecimento da voz de um ser amado era tão fácil como trincar uma tangerina.” … e “os corações mais leves tinham a configuração de uma romã e batiam ao ritmo da rotação do eixo das terras.”…
A romã, querida amiga… o fruto do amor. A paciência infinita de trincar bago a bago, os seus (julgo não estar errada) 613 bagos …
“Não sabiam enfiar uma linha branca numa agulha prateada porque não precisavam de coser. “.
Só o amor é verdade, minha boa amiga. Tudo o demais, dispensável. Aceitar a mudança e crescer nela.
Tão bom lê-la, a sério …
Beijo de tanta gratidão
Sua fã
Deu-me um prazer enorme ler este texto que tem tanto de misterioso como de imaginativo. E lembrei-me da Sophia quando diz: medo de amar neste lugar tão frágil como o mundo...
Um grande beijo, Manuela.
"Quando o clima começou a mudar não se angustiaram, não se entristeceram, aceitaram o frio das manhãs e o calor das noites e se alguém mais descontente pressagiava desgraças mandavam-no calar"
Deram-se as mãos.
E permaneceram na leitura incerta dos dias, persistiram no amor...
Querida Manuela, absolutamente fascinada pelas palavras, tão belas. Tão desejadas...Que sempre são alento.
Um abraço amigo, muito amigo.
dulce
Auf!
Acho que desta vez meti a pata na agulha!
Pelo menos quero ficar na memória como animal extinto que estou em vias de...
Auf!
Auf!
Olá querida amiga
É sempre uma viagem ler seu blog.
Não sou nada.
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada.
Á parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo.
[Fernando Pessoa]
Com muito carinho BJS.
.
.
. [20] .
.
. vin.te ver . :)))) .
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. 1 . 2 . 3 . 4 . 5 . 6 . 7 . 8 . 9 . 10 . 11 . 12 . 13 . 14 . 15 . 16 . 17 . 18 . 19 . 20 .
.
. íssimos felizes .
.
.
Querida Manuela, crias assim o mundo ideal...Encanta-me sempre passear por teus sonhos desenhados à giz. beijos,
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. e dois . nós .
.
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. íssimo . íssimo . brav.íssimo .
.
.
Manuela, demorei tanto a chegar aqui, mas valeu a pena, percorri esta cidade, estas vivências como só a Manuela as sabe dizer. Adorei a visão evolutiva e pouco catastrófica do desenrolar dos tempos, adorei as orelhas ponteagudas que reconhecem com facilidade a voz dos que amam, que reconhecem o amor até no silêncio, mesmo que não saibam coser, porque afinal não é assim tão preciso.
As pessoas felizes não precisam de muito para o ser, precisam apenas do "TUDO", a sabedoria do essencial, que está contida neste conto.
Parabéns.
Beijinhos.
Branca
Manela
Hoje o tempo mudou...de um sol agradável, passámos para um céu cinzento...contudo, " não nos angustiámos, não nos entristecemos e aceitamos o frio das manhãs e o calor das noites"...
As memórias foram guardadas em prédios muito altos e coloridos debaixo do mar para quem passasse com os seus barcos, os tocassem e sentissem o desalinhamento dos planetas que, afinal, era normal num mundo cada vez mais finito
e que os antepassados não entendiam nada e nem sequer sabiam como enfiar uma linha branca numa agulha prateada...
A única coisa que era igual, eram as estrelas que continuavam a guiar todos os que caminhavam...
Beijo
Graça
singular
é cada mudança de tempo
e permanecemos sempre
um abraço a todos!
manuela
Manuela,
Já tinha imensas saudades da blogosfera, em particular de espaços como o seu.
Este texto diz-me muito, é daqueles em que se confirmam determinadas sensibilidades que têm o condão de tocar as nossas mais recônditas teclas.
Um beijo e... um enorme viva à harmonia!
seja bem vindo AC!
e obrigada pelas palavras
um abraço
manuela
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