segundo andamento três tempos

O rapaz da concertina entra sempre na mesma estação, sorriso rasgado, os olhos brilhantes, as calças coçadas, os ténis ligeiramente descosidos junto ao dedo grande do pé direito. Diz " bom dia! e que belo seja este dia minhas senhoras e meus senhores, se estiver ao meu alcance, alegria venho dar e para ser bem feliz comigo venham dançar!"
As pessoas encolhem-se nos seus assentos, resmungam palavras soltas, colam os olhos às letras do jornal e mais tarde no emprego alguém dirá "engraçado! tens um A colado ao olho esquerdo..." ou então fixam um ponto longínquo no horizonte, assim do tamanho de uma mosca, mas tão interessadas se mostram que ninguém diria que o horizonte é aquela noção vaga de querer fugir, não ouvir, partir...e pensam "grande chato, este puto! e ainda faltam trinta minutos para sair daqui..."
O rapaz, indiferente aos pensamentos que provoca, até porque os pensamentos não se vêem mas sentem-se, pega na sua concertina e ataca Cielito Lindo, O Sole Mio e termina invariavelmente com Granada tierra soñada por mi.
O comboio tem três andamentos e muitos outros tempos. Ao primeiro andamento as crianças entram ensonadas, meio adormecidas, encostam a cabeça no ombro dos pais e continuam a sonhar os sonhos interrompidos por despertadores violentos, por leites ricos em cálcio, por cereais integrais com sabor a chocolate; as senhoras ainda caladas pintam os lábios em tons de carmim, esborratam o risco das pálpebras ao mínimo balancear, mas imaginam-se bonitas e elegantes e sorriem para os cavalheiros de gravata e fato completo. Os adolescentes escorregam pelos assentos, deixam cair as mochilas pelos corredores e enviam, calados, os mais importantes sms do dia. As raparigas tristes, olham tristes o mar azul e suspiram tristes as tristes histórias de amor.
Ao segundo andamento, o sol entra a rodos por todas as janelas, o comboio suspira de calma e tranquilidade e as pessoas sentem o cheiro do mar colado ao rio e olham a outra margem que ninguém sabe explicar porque é que fica do lado de lá, pois se esta é a nossa margem a que fica do lado de cá!
Ao terceiro andamento o rapaz entra e com ele o crescendo de sons, agitam-se as partículas de ar quente, os átomos de oxigénio, de nitrogénio e de dióxido de carbono fazem estalar imperceptivelmente a napa dos assentos e os dedos ágeis do rapaz da concertina, esvoaçam pelas teclas como pássaros excitados com migalhas de pão!
E em cada tempo, as pessoas do comboio estão certas da sua presença e se ele se atrasa na estação terceira, ficam apreensivas e dizem, fingidas "que sorte, hoje temos paz!" mas lá bem no fundo pensam "que pena! afinal o rapaz até toca tão bem..."e arrastam-se num andamento incerto.
Às vezes, o rapaz da concertina toca uma valsa alegre e nesse instante todos se esquecem que para cada chegada há sempre uma partida, uma despedida, um lugar a menos, uma cadeira a mais e trauteiam um, dois, três! um, dois, três! e soltam as vogais coladas aos olhos e desenham nos vidros com os batons carmim e cantam nos sonhos dos meninos adormecidos ao colo dos pais e as raparigas tristes dançam nos corredores onde as mochilas escorregam de tanto sorrir.
E que belo dia, seja este dia.
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esta é uma página fingida de valsa, ao som de uma concertina
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(fotos pessoais e desconcertadas)
Manuela Baptista
Estoril, 20 de Abril, terça feira à noite

38 comentários:

Anónimo disse...

O Rapaz da concertina
É maluco como tudo
Assim que olha para mim
Até prefere ficar mudo

Pois eu sou o mais bonito
E só eu sei tocar
Até cair o carrapito
Da Manuela no altar

O Papa mudo e quedo
Nem queria acreditar
e disse: a igreja não é brinquedo!
E as crianças não são para abusar

Um beijinho total como diz aquele sujeito meio esquisito do Intemporal, vulgo tótó,

De quem? de quem?

D`O Rasteirinho pois claro.

Jaime Latino Ferreira disse...

Vinha eu escrever das semelhanças entre uma concertina e um comboio e a atrapalhar tudo logo me aparece aqui um rasteirinho, um croc como diria a Manela que com os dois primeiros tem ainda mais e acrescidas semelhanças:

Tal como o comboio o Rasteirinho circula de estação em estação como logo o denuncia o Seu poema na sua terceira estrofe e como uma concertina insinua-se circulante e respirando em fole transpirante de valsas e cantares que alegram a composição.

A propósito:

Muito bonito, Manela!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 20 de Abril de 2010

Branca disse...

Ai, Manuela, Manuela, se soubesse as voltas que já dei desde o princípio da noite, desde que abri a sua história para ler e comentar?
Estou pior que o comboio, foram três andamentos e muitos, muitos outros tempos...

Perdi-me pelo Intemporal e fugi de si porque deixei lá um beijo total.íssimo e cruzei-me com montes de mimos pelo caminho e afinal quando voltei vi que tinha entrado lá antes de mim sem nos esbarramos e fui a correr responder-lhe no meu sítio a algo que queria dizer-lhe e não podia ser aqui num post novo a estrear e eis que encontro este crocudilus lá em casa e nestas voltas todas ainda encontrei outros amigos num outro sítio e só agora cheguei e lá está o crocodilus outra vez a estorvar-me a passagem, mas gosto dele coitadinho e ainda tenho que ir puxar as orelhas ao Walter, coisa que também já tentei fazer mas fiquei a meio.
Ai que roda viva!
Já pareço o rapaz da concertina!
A história é muito linda sim senhor, até me fez lembrar o revisor do eléctrico que me levava ao liceu pelos 12 anos e que também tinha muitos andamentos, não o revisor, mas o eléctrico. Uma hora de viagem em cima de carris e o senhor "pica bilhetes" que tinha um humor fantástico e fazia pequenos "Sketches" para um grupinho sempre igual que se juntava na parte de tràs à espera que ele acabasse o seu seviço e nos viesse divertir...e a minha professora de moral que me ensinava a sorrir para toda a gente e eu treinava logo de manhã com o senhor do eléctrico para começarmos bem o dia, como ela dizia, :) e não é que resultava?

Como sempre a Manuela tem um dom especial para "pintar" com letras as cenas do quotidiano.
Belíssimo este quadro.

Parabéns.
Muitos Beijinhos

manuela baptista disse...

Rasteirinho (O)

não consigo perceber, como é que um quadrúpede mandibular conhece o rapaz da concertina!

eu sei que ele é uma figura mais que conhecida na linha Cascais/Lisboa, mas que eu saiba, não se vendem bilhetes a Crocs...

agora esta, de bonito rimar com carrapito até ao altar!

claro que quando o Papa fala, pensamos logo em altar daí...talvez...

mas meu querido Croc, chamar tótó a alguém é que é mesmo muito feio!!
diria totalmente feio!

de castigo, não levas uma festinha...

Manuela

manuela baptista disse...

Jaime

uma concertina é mais parecida com aqueles autocarros da Carris que ligam Algés a qualquer ponto do interior, suficientemente deprimente para afastar crocodilos...

eu só viajei neles umas duas vezes, exactamente naquele estranho fole e não caí na primeira curva, porque ainda tive a oportunidade de cair nas 50
curvas seguintes!

quanto à alegria, está bem,
o Croc tem ALGUMA graça, mas uma concertina coloca-se com duas alças aos nossos ombros,o que me parece impossível de fazer com um crocodilo...
aproveitava logo para nos comer as orelhas!

...eu também acho que está bonito...

Manuela

manuela baptista disse...

Branca

estava longe de pensar na agitação da sua noite...

esbarramentos, compassos, volteamentos, enfrentamentos, provocamentos, estorvamentos
corridas no espaço blogal!

o que é isto comparado com um comboio de gente feliz a valsar?

...então conte lá a história do guarda freio que sabia dramatizar...

beijinhos

Manuela

Anónimo disse...

Que bom deve ser viajar num comboio assim!

Anónimo disse...

Que bom deve ser viaja num comboio assim !

Anónimo disse...

Olha e agora até faço côro! Melhor!


Beijinhos que eu vou valsar um bocadito

Unknown disse...

Socorro Manuela!!!

Pode fazer-me um curativo aqui numa perna? Sabe de enfermagem não sabe...?
Olhe, vinha a entrar no portão e fui atacado por um crocodilo, não sei que mal lhe fiz? Ontem puxaram-me as orelhas, ainda me doem, hoje uma dentada, agora só falta a Manuela atirar-me à cabeça a concertina...
Ai que eu vinha tão feliz para dançar consigo uma valsa a três tempos ou até a mil, mas assim com a perna neste estado, só me resta ficar a ver os outros a dançar... e o rapazinho que toca tão bem a concertina! Como é que alguém pode ficar indiferente? Só mesmo os crocodilos, não é mesmo?

Manuela, eu vou ficar aqui na carruagem de trás, sentadinho, a ouvir o rapaz da concertina, só espero que não toque "une valse à mille temps", no estado em que estou, coxo e dorido das orelhas, já não me endireitava mais...ai Nossa Senhora d'Agrela que não há Santa como ela!

Uma pérola o que escreveu, minha amiga Manuela Concertina!

Amei, amei, amei!

Beijos musicais

Walter

manuela baptista disse...

Filomena!

melhor do que viajar num comboio assim

só mesmo viajar num comboio assim!

ou será valsar um bocadito

ou valsar ainda mais um bocadito?

beijinhos a duplicar

Manuela

manuela baptista disse...

Walter

serviços de enfermagem?

bem, tenho larga experiência em cabeçinhas de criança com grandes galos, braços fracturados e joelhos esfolados

lápis de cor amigavelmente espetados numa bochecha gordinha, também!

agora, orelhas e pernas arrancadas por uma alimária?

Peço desculpa pela recepção, mas estava convencida que o Croc estava na reserva de...já não sei o nome...

Valsa amanhã ou quem sabe? no fim de semana :))

um beijo

Manuela

e não me importava nada de ser Concertina! sabe que Concertino é o primeiro violino de uma orquestra?

Cândida Ribeiro disse...

Lindo e verdadeiro este conto que sabe a vida e cheira a mar...e todos nós somos peças importantes para que o homem da concertina tenha vontade de tocar e de sonhar.

Para a minha querida Manuela,
um abraço que vai de comboio para depressa chegar

manuela baptista disse...

Canduxa

por um acaso estava aqui nesta estação!

e agarrei o abraço, com o comboio em andamento...

beijinhos

Manela

alegria de viver disse...

Olá querida
Será um conto, uma mensagem, é uma história daquelas de tirar o fôlego.
Quanto mais lemos mais encantados ficamos.
Que saudades eu tenho, andar de comboio, belas paisagens entrando pelas janelas registradas na memória.
Estou sonhando vou ficar por aqui não quero acordar.
Com muito carinho BJS.

Graça Pires disse...

O rapaz da concertina levou-me em sonhos até à minha infância. Fico por lá um pouco, está bem?
Depois irei de comboio até sei lá onde a ouvir a concertina do rapaz...
Um grande beijo, Manuela.

Anónimo disse...

Ai que triste eu hoje venho
Estou mais frio do que um andaime
Do nariz solta-se-me o ranho
Do que lá em cima diz o Jaime

Eu até gostava tanto dele
Assim de perfil bem penteado
Mas ele acha que sou chanfrado
Mas eu sou este não sendo aquele

Que culpa tenho em ser tão bonito
Da cor da esperança e da clorofila
É na amizade que eu acredito
E nas amigas de carrapito
Por isso Jaime... não refila!

Um beijinho de quem? de quem?

D`O Rasteirinho, pois claro.

Mereço uma festinha? :(

manuela baptista disse...

Rufina

sem fôlego, sustendo a respiração

numa viagem entre mares

beijinhos

Manuela

manuela baptista disse...

Graça Pires

numa ida até à infância, sim!

Mas que tenha sempre volta.

um beijo

Manuela

manuela baptista disse...

Croc

agora estás todo ranhoso...só espero que não sejam lágrimas de crocodilo...

e pelos vistos isto hoje tem que ir por partes!

primeiro:

o Jaime não te chamou chanfrado! disse que tinhas semelhanças com um comboio e com uma concertina o que é um elogio. Queres melhor música?

segundo:

eu é que te chamei alimária, o que não é mentira nenhuma

terceiro:

eu não usava carrapito era rabo de cavalo! tens ciúmes? por não ser rabo de croc?

quarto: afinal porque é que saíste aqui da banheira?

e por último

faço-te uma festinha e dou-te um beijinho (de olhos fechados) se não chamares o intempo. de tótó!

Manuela

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Obrigado por vires em minha defesa e em rigor, como o escreves, o Rasteirinho é que chama tótó ao Intemporal ...!

Ele há cada coisa!


Rasteiro o crocodilo
tomava banho no Nilo
não nadava na banheira
nem rastejava na eira

Tinha sotaque de feira
e dizia cada asneira
ai crocodilo que ao quilo
já entopes este silo

Se era poema que querias
crocodilo em que te fias


Dá-lhe, se não te importas, este poema e responde-lhe assim como tão bem o sabes fazer com as tuas falinhas afectivamente tão mansas


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 22 de Abril de 2010

MARCELO DALLA disse...

Olá Manuela!!!!!
Que prazer! Novos amigos são sempre bem vindos. Ainda mais quando são inteligentes, sensíveis, talentosos e gostam de brincar com as palavras. Tenho feitos muitos amigos em Portugal, cada um mais carinhoso que o outro e isso me deixa muito feliz.

Já me tornei freguês!
bjo

manuela baptista disse...

Marcelo

já viu a volta que um abraço dá?

seja em vindo!

eu também tenho muitos amigos desse lado...

+ um abraço

Manuela

Teresa Diniz disse...

Já me aconteceu encontrar nos transportes esses rapazinhos. É verdade que as pessoas olham para o lado e disfarçam, mas trazem-nos pequenos pedaços de alegria e tornam o dia melhor. Eu gosto.
Bjs

sideny disse...

Ola Manuela

Mais uma bela historia.

O rasteirinho anda por aqui tambem

Temos de lhe arranjar uma companheira para nao se sentir tao sozinho, nao acha

:))

beijinhos

Dulce AC disse...

"... e os dedos ágeis do rapaz da concertina, esvoaçam pelas teclas como pássaros excitados com migalhas de pão!"

Neste crescendo de história e de vida...revi-me numa daquelas carruagens, num daqueles dias em que ele por ali passou..o jovem da concertina...e alegra sempre, por um momento mesmo que curto e mesmo o mais distraído dos corações quase que pára... para escutar
é um momento único, em que damos nos conta da música e do rapaz e não deixa de ser triste...por ser rapaz e por ali andar...e só não sabe este sentir quem nunca por ele passou naquela ou noutra carruagem...

muitos beijinhos de tanto gostar da história porque é verdade porque é viagem porque é paragem na nossa vida... (Olá Manuela!)

dulce

. intemporal . disse...

.

. esta é uma página reveladora da perspicácia da observação latente pela agudeza e penetração da vista com que decifra as rotinas que constituem os andamentos do mundo, a todos os tempos .

.

. esta é uma página que intemporaliza a efemeridade de tantos os momentos .

.

. esta é uma página, tão diferente e tão igual a tantas outras, que aqui nos são essência ao peito .

.

. ! parabéns, Manuela .

. um beijo total, o de sempre .

.

. um bom fim de semana .

.

. paulo .

.

Graça Pereira disse...

Manela
Nunca tive a sorte de viajar num comboio ao som de uma concertina... tenho a certeza que seria mesmo um bom-dia. O pior, seria manter os meus pés quietos não fossem eles atrás das notas...
Em três tempos, num só andamento, tocaste a partitura de tantas vidas que observaste na vertigem do comboio valsando também ele...sem sair da linha!
Aonde iria eu buscar histórias tão lindas? De certo, ao comboio onde há um rapaz que toca concertina e uma passageira que vive na vertigem das palavras e levanta o estame da vida, bebendo o mel para nos deliciar.
Beijo
Graça

manuela baptista disse...

Teresa

e eu sempre que viajava com eles tinha uma vontade imensa de fazer um filme à Wim Wenders, a preto e branco, que terminava com as pessoas a dançar pelos corredores das carruagens!

beijos

manuela

manuela baptista disse...

Sideny

espero que tenha descansado!

...é! uma companheira para o Croc? Já apareceu uma, mas tão doidona que eu acho que o verdinho se assustou...

beijinhos

Manuela

manuela baptista disse...

Dulce

é, uma viagem, cada paragem da nossa vida!

eu fico sempre completamente desarmada com as pessoas que tocam qualquer instrumento na via pública ou nos transportes, porque de facto estão a oferecer-nos arte e tantos são os que nem reparam...

Ainda há pouco tempo, em Cascais, estava um jovem a tocar violino na rua Direita, com um frio de rachar e ninguém lhe ligava nenhuma e tocava mesmo bem!

beijinhos

Manuela

manuela baptista disse...

Paulo

se me fosse permitido intemporalizar os momentos fugazes

era isso que eu faria!

entretanto
aqui
neste momento

dou-lhe um grande abraço
está bem?

Manuela

manuela baptista disse...

Graça

nunca tiveste a sorte de viajar de comboio ao som de uma concertina

porque os comboios do sul,dos mouros, são muito melhores do que os do norte :))

obrigada pela bonitas palavras!

beijos

Manuela

manuela baptista disse...

Renata

aparecida de face inteira!

gostei!

bom fim de semana para ti também!

beijos

Manuela

Branca disse...

Manuela,

Passo, hoje só para deixar um beijinho de boa noite, é tarde e o sono já é muito.
Branca

Anónimo disse...

Comentar é interpretar, partilhar o pensamento
Ou simplesmente bater à porta e fazer silêncio
Fiz este poema sózinho pois tenho talento
E deixo um beijinho grande, imenso.

Um bom fim de semana,

Um beijinho de quem? de quem?

D`O Rasteirinho, pois claro.

manuela baptista disse...

Branca

beijinhos de BOM DIA!

Manuela

manuela baptista disse...

Croc!!!!!!

tu és i.m.e.n.s.o._________

festinhas na crista

Manuela