Tosca

foto de walter
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-Estás gordo!- gemeu baixinho-não te importas de te chegar um bocadinho para lá?
Gaspar deu um salto, despertado de repente de um sono profundo ainda perdido entre trincas e pâtés, já que de carapaus não percebia nada, a cauda eriçada, os pêlos do nariz esticados, atitude de combate e de bravura felina!
Ela riu-se e estalou ao sol.
-Não é lá muito educado ofenderes-me! Já reparaste como o meu pêlo é brilhante e os meus dentes fortes e aguçados? Eu sei que tenho uns quilos a mais, mas confinado como estou a quatro assoalhadas...proibido de entrar em duas delas porque afio as unhas nos sofás...-disse o gato.
-Se fosses esperto davas uma fugida, ias até ao porto de madrugada, roubavas um peixe ou dois, passavas pelo parque, afiavas as unhas e trepavas a uma árvore, miavas ao luar...sentias-te logo outro gato!
Ela riu-se novamente e Gaspar sentiu um toque de cristal dentro de si. Afastou-se ligeiramente e olhou-a, um pouco desalinhada, metade vermelha, uma parte de ocre, outra da cor usada pelo tempo para marcar os que lhe são fiéis, umas pinceladas de musgo, outra de líquenes, tosca, mas bela.
-Como é que tu sabes tanta coisa aqui parada há tanto tempo?-perguntou.
-Parada? Quieta às vezes, sim! Mas não sentes como a terra gira, como a estrutura do telhado range e como posso olhar ao longe e observar o que os outros não vêem?
Gaspar fez um focinho de quem não sentia nada daquilo e então ela contou-lhe das vozes que o vento lhe trazia, das pequenas sementes que aterravam por umas horas perto de si, das lagartixas que lhe faziam despudoradamente cócegas, dos ratinhos que escondiam migalhas de pão nos forros da casa e da chuva suave que a lavava, do granizo que a espancava, da suavidade da neve que a fazia adormecer. E de um menino magrinho, que todas as noites se esgueirava pela janela de um sótão e com uma lanterna pendurada ao pescoço gostava de contemplar as estrelas e de adormecer com os braços cruzados atrás da cabeça.
O gato pasmava com as coisas que ouvia e ela disse:
-E isto, não é metade daquilo que eu sei!
Uma noite, Gaspar ganhou coragem e com a ajuda do menino magrinho com olhos de estrelas, saltou de telhado em telhado e com o coração aos pulos correu pelas ruas desertas, foi até ao porto de pesca, esperou a chegada dos barcos, sentiu o cheiro a peixe fresco e a mar, enfrentou duas gaivotas brigonas, mas foi bem sucedido no roubo do seu primeiro carapau! De regresso a casa não se esqueceu de trepar a duas ou três árvores, de soltar as suas garras de fera e tão louco estava com esta aventura que deixou caída a sua coleira encarnada com falsos gatinhos e espinhas de peixe. De manhã, quando o dono abriu a porta ao leiteiro, ouviu-o dizer:
-Ia jurar que tinha deixado o gato dentro de casa...
A aventura de Gaspar repetiu-se outras noites e quando se encontravam nas tardes de sol em cima do telhado e ela estalava contente de o ver, ele sentia-se o gato mais feliz do mundo e trocavam histórias de vadiagem e sabiam os dois quantas andorinhas já tinham chegado, quantos melros a tinham bicado e acreditavam que a Primavera era a eternidade de todas as estações.
Mais tarde na noite, se existisse alguém suficientemente sensível para ansiar pela solidão dos telhados e conhecer o caminho das estrelas, poderia ver um menino adormecido com os braços cruzados atrás da cabeça e um gato enroscado numa telha, ligeiramente desalinhada, pincelada de musgo e de líquenes. Tosca, bela.
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Esta é uma página vadia, presa à terra pelo fio de uma telha.
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Vissi d'arte, vissi d'amore - I lived for my art, I lived for my love
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Manuela Baptista
Estoril, 16 de Março 2010

32 comentários:

Linda Simões disse...

Manuela,

quando eu crescer quero ser igual a você!E contar histórias assim!


Eita que que é cada uma melhor que outra!

Um beijinho,

Linda Simões


Dulce, beijinho pra ti também!

Benó disse...

Gostei da história do Gaspar. Um gato para ser um verdadeiro gato tem que ser vadio, pelo menos de vez em quando. Ao contrário torna-se bibelô de casa.
Voltarei.

*Lisa_B* disse...

Querida Manuela,
estava a reler esta linda história e admirar a beleza de uma telha...Walter é mesmo um artista e a Manuela encanta-nos com as palavras de magia.

Eita e tal como diz a Linda eu quando crescer mais um kikinho quero ser assim:-)

O Bruno adorou sorriu após uma noite de algumas lágrimas ( mudança de planos e rotinas ele não consegue ainda gerir tudo isso) deixa um a.m para a Manuela e aproveitamos os dois para estender os beijinhos abracinho e a.m a todos que aqui passam e nos deixam seu carinho.

Peço desculpa por não ter ainda os bytes necessários para fazer a ronda aos amigos todos mas estão no meu coração.

Lisa_B e Bruno_B

Branca disse...

Apesar de eu hoje estar tão tosca quanto a telha, adorei que nos avivasse a memória para a vida que se faz por cima das telhas...

E esta telha do Walter é uma beleza, não é?

A arte do nosso amigo é de uma inspiração que nos envolve.

Beijos Manuela.
Da Branca (hoje mais lacónica):)

Jaime Latino Ferreira disse...

WALTER, MANUELA E FILOMENA


Bonita fotografia, Walter!

Bonita História, Manela!

E quanto ao Gaspar, estou em crer que a Filomena ficará com menos ... telha!

Beijinhos e abraços


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 16 de Março de 2010

Unknown disse...

...hum! eu hoje tive uma briga muito feia com uma amiga gaivota, a parvinha lá do bando, (sei lá se é amiga), mas pronto... só sei que tinha lá uns carapáuzinhos de lado escondidinhos atrás de um barco com um nome muita esquisito, vejam só: Histórias Com Mar ao Fundo, não tem jeito nenhum, pois não? Ainda se fosse Histórias de Gaivotas com Carapáus à Vista, vá lá que não vá... mas eu só queria dizer que esse gato manhoso, ainda me vai levar uma boa bicada, eu conheço bem esses telhados, um por um, não lhe vou dar sossego...
Pronto o felinozeco saiu-se agora das cascas, pudera, tem lá uma rica professora no telhado, enfim...
O meu rico almoço caraças...


Beijinho de uma gaivota esfomeada, por culpa de um gato que aprendeu a ser gato...

manuela baptista disse...

Linda

quando eu crescer

quero ser tão alta como os telhados!

beijinhos

Manuela

manuela baptista disse...

Benó

e nós também!

para sermos verdadeiros temos de vadiar, pelo menos de vez em quando...

beijinhos

Manuela

manuela baptista disse...

Lisa B

que, mesmo com poucos bytes, chega sempre aqui!

então Bruno?

quando ficamos assim chateados, dizemos que estamos com a telha, mas como vês é mentira! Estar com a telha é uma coisa mesmo boa e podemos sempre apanhar com a chuva na cara e conversar com gatos gordinhos...

Hoje, dou-te dois a.m. para compensar o tempo que estamos sem falar.

e beijos para a Lisa

Manuela

manuela baptista disse...

Branca

se está tão Tosca como a telha...está bela! ou vai ter que ler a história outra vez?

Sabe de quem é gato Gaspar?

se eu não lhe soltar a língua, quem o fará??

beijinhos...

Manuela

manuela baptista disse...

Jaime

é verdade! identifiquei os telhados e cometi uma omissão em relação ao gato...

Ei-lo, Gaspar! mimado e gordinho que mora lá para cima na casa da Filomena :))

Manuela

manuela baptista disse...

Walter, engaivotado!

...mas a heroína desta história era a TELHA!

E quer saber um segredo? O peixe cru e fresco faz pessimamente aos pobres dos gatos! A ideia de que devem comer peixe é mito.

Por isso gaivotita, fique lá com as barbatanas todas!

um beijo

Manuela

PS escolhi o seu telhado mais pequeno e que eu acho tão bonito!!

Unknown disse...

...hihihi... desta vez troquei-lhe as voltas:)))

como a telha era minha, preferi imaginar outra heroína para a história, (mas é segredo nosso), imaginei então uma escrevedora de histórias no meu telhado, a tal professora...hihihih

pronto agora já percebeu...
com todo o respeito pela velha e sábia telha:)

um beijo

manuela baptista disse...

Walter

a casa onde morava quando era pequena tinha um sotão com uma varanda e daí saltava para o telhado onde me aventurava sem cinto de segurança.

Cheguei inteira até hoje, mas tenho uma paixão por telhados...

Este telhado é mesmo seu? Se for, vou para aí escrever uma história!

com as voltas trocadas...

um beijo

Manuela

Unknown disse...

Que história encantadora.
Nesses tempos os animais falavam e entendiam perfeitamente tudo quanto se passava lá por casa e na rua.
Parece que hoje desapareceram esses animais.

manuela baptista disse...

Luís

mas ficámos nós que os entendemos...

um abraço

Manuela

. intemporal . disse...

.

. ! bel.íssimo .

. porque in.comentar, no presente caso, é simples.mente consentir, ou permanecer calado, pois assim se pode dizer muito .

. os meus parabéns .

. um beijo total .

.

. paulo .

.

manuela baptista disse...

Paulo

então fico caladinha

a dizer tanto...

um beijo total

Manuela

Graça Pereira disse...

Gosto de histórias com gatos! Invejo-os! Pudesse eu andar sobre os telhados, conhecer o mundo lá dos altos, namorar as estrelas e fazer versos à lua... A propósito o Gaspar não terá visto o meu Nemo nas suas andanças? Há cinco dias que não vem a casa... Não sei se namora as estrelas ou se namora as gatas...Hei-de falar-lhe na Tosca que sabe tanto a ver se o torno um pouco intelectual... Será pretensão minha?
Estava a precisar de ler uma história assim, meio mágica, meio verdade.... e só tu o sabes fazer por isso, te nomeei para o Blog de Ouro! Agora, já tens uma telha...para meter os mimos.
Beijocas
Graça

manuela baptista disse...

Graça

o Nemo pirou-se? Juro que não o incitei à vadiagem...

o blogue de ouro? vou lá espreitar...mas o meu
é azul!

beijinhos

Manuela

Dulce AC disse...

"...poderia ver um menino adormecido com os braços cruzados atrás da cabeça e um gato enroscado numa telha, ligeiramente desalinhada, pincelada de musgo e de líquenes. Tosca, bela"

Poderia ver um menino ..ou quiça uma menina,
que também adora espreitar as estrelas meia adormecida com as mãos atrás da cabeça e de ter por companhia a de um gato completamente enroscado numa telha, desalinhada e perfeita
tão bela- a telha da casa do Walter, ou talvez uma outra telha que também poderá ser da casa da Manuela e do Jaime... e quiça os dois à janela a olhar as estrelas e tê-lo por perto um gatinho, que não estando enroscado também as contempla as estrelinhas pintinhas amarelas ao luar de cristal (e lembrei-me da Lisa...olá! e do Bruno...olécas!)

E a vida continua uns dias mais alinhada e noutros nem por isso e é bom que as tenhamos por perto essas sempre estrelinhas pintinhas no espreitar da janela...

Um abracinho grande Manuela por este sentir de cristal cá dentro de nós ao lermos esta história de página vadia e muito bonita..

dulce

Por toda minha Vida disse...

Querida Manuela.

História de Uma Gata
Os Saltimbancos
Composição: Enriquez/Bardotti - versão: Chico Buarque

De manhã eu voltei pra casa
Fui barrada na portaria
Sem filé e sem almofada
Por causa da cantoria
Mas agora o meu dia-a-dia
É no meio da gataria
Pela rua virando lata
Eu sou mais eu, mais gata
Numa louca serenata
Que de noite sai cantando assim

Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás

Beijo

Renata

manuela baptista disse...

Dulce

alinhada ou nem por isso, mas inspirada!Obrigada pelas palavras...

Por aqui, este ano, as telhas meteram água, mas as estrelas permaneceram as mesmas e a paixão da sua contemplação também.

um grande abraço
vadio como um gato

Manuela

manuela baptista disse...

Renatita

já fui ao youtube ouvir essa canção, que eu não conhecia.

gostei da ideia!

beijinhos

Manuela

Graça Pires disse...

Sempre histórias tão comoventes, Manuela!
Hei-de prender as mãos às telhas para que os gatos façam da vadiagem um hino à magia da noite.
Um beijo, Manuela.

Unknown disse...

Manuela

Só mais um miau... aquele que não dei no primeiro comentário porque a emoção tomou conta de mim no dia dia em que colocou aqui a "Tosca".
Parece estranho não é? Não, não tem nada a ver com o facto de ver aqui publicada uma foto minha, ainda que isso muito me honre, tão somente pelo dia que foi... eu contornei a situação brincando com o texto.:))
A Manuela conta histórias maravilhosas, você capta ou "rouba" histórias às pessoas - como diz - depois desconstrói tudo para voltar a construir que nem um castelo pedra-a-pedra, mas a essência da história permanece lá, intácta...depois quando as vamos ler, tantas são as vezes em que nos vemos personagens reais dentro de uma história que pode ser nossa, pode ser de qualquer um...

Particularmente nesta história ou fábula, eu vi pessoas, pessoas reais...

Sabe... meu pai era capataz numa fábrica de tijolos e telhas, sobretudo de telhas e havia muitos gatos vadios nessa fábrica, por todos os telhados, por todos os sectores, procuravam as paredes quentes dos fornos especialmente no inverno, lembro-me tão bém... meu pai também gostava de me levar para lá depois de terminada a escola, fazia ali os meus deveres escolares também encostado aos fornos, ao mesmo tempo que distraía aquela gataria toda, impedindo-os de entrarem nos fornos quando estes estavam abertos. Muitas vezes fui procurá-los entre as telhas ainda cruas para evitar de "virarem tijolo":)
Lembro-me de dois em particular, o cegueta e... espante-se: o tosco, apelidado assim por andar sempre com o pêlo todo queimado, era mesmo tosco:))

Manuela, quando fotografei os telhados foi no meu pai que pensei, ele sim, sempre foi e sempre será o meu herói, o meu chão, o meu telhado e eu seu gasparito.

Ah... estes telhados não são meus, mas você conhece-os tão bem quanto eu, já lá esteve com certeza várias vezes, quase em cima deles, são telhados com mar ao fundo...:)

Obrigada pelo momento, que a mim teve sabor de presente...

tantos beijos quantas as telhas dos meus telhados:)

Walter

manuela baptista disse...

SESIMBRA??

eu sabia que já os tinha encontrado antes (aos telhados)!! Lindo!

como linda é a sua história de vida, com o seu pai na fábrica de tijolos e o Cegueta e o Tosco e o menino a salvar os gatos de assarem no forno...

e amanhã é o dia do pai, coisa que não existia quando eu era pequena, sendo apenas o dia de S.José o que significava mais uma missa para mim, pois frequentava o colégio de S.José...mas agora lembro-me também do meu pai e mais tarde o Walter vai ficar a saber o que é que ele me ensinou.

Obrigada pela bonita pessoa que é!

e agora

um abraço de partir tijolo :))

Manuela

manuela baptista disse...

Graça Pires, que não a vi!

prendendo as mãos às telhas,
basta um pouco mais

e chegamos às estrelas...

um grande abraço, Graça!

Manuela

Cândida Ribeiro disse...

Manuela,

Fiquei maravilhada com a sabedoria e beleza da Tosca e encantada com o Gaspar que depressa aprendeu. miau, miau…como é belo viver em liberdade e ousar viver novas experiências!
Gasparrrr, eu sou parecida contigo, e quando não o sou é porque algo está mal na minha vida…
Como é bela a noite e as estrelas que brilham enquanto "meninos" estendem os braços acreditando que as conseguem apanhar.
É isso a vida….escutar no silêncio o bater do coração e adivinhar a magia que existe à nossa volta…mesmo parecendo que uma pequenina e solitária telha não tenha nada para contar....esta tinha muitas histórias ,assim como as do Walter.
A beleza das pequeninas coisas é as que mais nos ensinam.
O mundo podia ser feito de histórias…belas como estas e como tantas outras que a Manuela nos conta e que me embalam depois de ver as estrelas brilharem.

Beijinhos com todo o meu carinho

Branca disse...

Vim espreitar por cima do telhado as emoções ao rubro e fiquei menos lacónica que da última vez, mas com os olhos húmidos, porque vim reler uma história e acabei por ler outra história, a do Walter.

Nem sei que dizer, a Manuela já disse tudo e a emoção tomou conta de mim...

Em ambas as histórias salta à vista a infância feliz, de aventuras e de tantas histórias que tivemos, eu incluo-me em alguns telhados por aí e a subir aos tijolos em casas em construção, que vieram a ser minhas vizinhas e onde esfolei joelhos.
Eram infâncias de afectos e liberdade, de conhecimento precoce da vida, no convívio com os mais velhos e as suas dificuldades e sabedoria.
Infâncias com oportunidades para brincar, ouvir histórias, mas também para observar tudo o que nos rodeava, o que definiu muita da nossa sensibilidade de adultos.

O Walter tem histórias fantásticas para nos contar, qualquer dia estou a ver uma história a quatro mãos.:)).

Beijinhos para os dois.
Branca

manuela baptista disse...

Canduxa, Gasparinha

que palavras tão bonitas!

é tão bom ter alma de gato não é?

beijinhos

Manuela

manuela baptista disse...

Branca

a quatro mãos

são tantas as mãos! eu é que já não tenho coragem de lhe roubar mais nada...

Beijinhos de bom dia!

Manuela