conto da coruja que gostava de ler






Quase nada a diferencia de todas as corujas das torres e porque escasseiam as torres, procura cada vez mais longe os abrigos para o dia, a ventania, a chuva, os ovos que põe no despertar da primavera. Gosta da noite e da solidão. Ondulante, lenta e silenciosa, caça, rapina. Conheço-lhe o grito e a esta, chamo-a de Josefina.
A sua primeira casa foi um abandonado último hotel, as escadas em ruínas, as varandas de ferro forjado agora quebrado e Josefina nidificava no salão de festas destelhado e espreitavam as estrelas e dançavam ainda os hóspedes vestidos no rigor dos tempos felizes. Um dia vieram os operários, ergueram vedações, martelaram licenças de demolição e construção, desconstruindo-lhe o abrigo e o silêncio.
Seguiu-se a segunda e a terceira casa, um torreão arruinado, uma chaminé onde já não cheirava a pão. Josefina não se importava com as mudanças, precisava apenas de pontos de referência: o pinheiro manso na curva da estrada, a araucária gigante no meio do jardim. A quarta e atual morada escolheu-a numa noite de nortada. Numa casa antiga e aparentemente desabitada, uma janela batia. Josefina aproximou-se, posou no parapeito e entrou. As paredes cobertas de estantes e as estantes repletas de livros deram-lhe um sentimento de segurança e Josefina gostou do cheiro e do som da madeira a estalar e pensou, cheguei a casa. E porque durante a noite os impossíveis não o são verdadeiramente, ela começou a ler os livros das estantes e a cada manhã adormecia cansada por ter viajado tanto.
Passaram muitos dias e muitas noites e numa delas, Josefina saiu pela janela com um livro no bico e largou-o no parapeito de uma outra janela. E outras tantas foram as vezes e os livros trocados que as pessoas acordadas vinham às janelas, às varandas e aos quintais e liam em voz alta para se ouvirem e fazerem ouvir. Foi assim que eu conheci Josefina com um livro de contos de marear. Depois pedi-lhe mais um, de mitos e medos e ela acedeu e acedia sempre e era uma ave linda no céu estrelado das ruas vazias. Claro que os contos, as lendas e os romances se misturaram e as pessoas acordadas à janela das ruas vazias entenderam os segredos umas das outras.
Por agora Josefina permanece aqui entre o pinheiro manso, a araucária e a janela que bate quando sopra o vento norte. 


















Desejo-vos asas para continuarmos a voar!




10 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA

... e a Josefina era linda de morrer, de sonhar e de se ler e sejam bem vindas, de novo, as tuas lindas histórias e desenhos!

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 11 de Abril de 2020

Rogério G.V. Pereira disse...

Por aqui, nós Desenhando Sonhos vamos aconselhando contos uns aos outros. Olha este, diz um. Olha agora aquele. Por fim alguém alvitra, conta aquele do Miguel Torga que estava mesmo calhar no Domingo de Páscoa. Acedemos ao pedido, e amanhã no meu espaço vai ser lido.

Talvez este teu se siga... querida amiga!

Maria João Brito de Sousa disse...

Gostei imenso desta Josefina, Manuela!

Boa Páscoa!

Graça Pires disse...

Se a Josefina quiser arranjo-lhe um espaço aqui na minha estante de poesia com muitos livros… Também quero o fascínio de ter asas.
Já tinha saudades das tuas história, Manuela. E de ti.
Uma boa semana.
Um beijo

vieira calado disse...

Havemos de continuar, amiga!

Saudações poéticas!

. intemporal . disse...

.

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. é no silêncio da noite que a palavra ganha vida . e pode então voar .

.

. íssimo . feliz .

.

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© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

E
eu desejo que a Josefina tenha sempre asas para voar
e o desejo de ler sempre mais e mais

tuas estórias, sempr deliciosas de ler.

ah! e gostei das imagens da Josefina

bom fim de semana.

beijinhos amigos

:)

Agostinho disse...

Não apareça alguém com ideias, para que a Josefina majestosa possa continuar a surpreender a vizinhança com leituras a condizer com as luas que por ali passam.

Bj.

mz disse...

Os ensinamentos que a sua Josefina.
Nada na vida é permanente, as mudanças são uma constante e isso é uma realidade deste tempo.
Adorei a imagem da Josefina a nidificar no salão de festas e a partilha dos livros com todas as pessoas que a esperavam nas suas janelas, nas varandas e nos quintais. As suas vozes de partilha e a descobrirem que existiam.
Pode ser que a Josefina me deixe um livro também!

Que lindo!

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Foi bom reler-te.
Obrigada
Beijo