Isidora





Dizem que já andei por aí aos caídos. Entre os muros de pedra, escondida na hera a ganir de medo. O rapaz das jardineiras azuis encontrou-me, fez-me festas na cabeça, pegou-me ao colo, eu lambi-lhe o nariz, reconhecida. O rapaz riu-se e meteu-me no bolso das jardineiras com a cabeça de fora. Dali é que eu não queria cair, era alto demais, mas deu-me coragem e ladrei duas vezes de alegria. O rapaz percorreu todo o bairro, tocava às campainhas e perguntava, é sua? Perdeu uma cadelinha pequena, castanha, as orelhas compridas? É essa aí, perguntavam. Sim, respondia o rapaz. Não é nossa, respondiam eles. O rapaz cansou-se e eu com ele no bolso das jardineiras azuis e voltámos para casa, a dele, porque eu não sabia qual era a minha. Foi assim que eu fiquei com o rapaz numa casa branca com duas portas e sete janelas.
Brincávamos o dia inteiro na casa, no quintal, na rua e nos campos à volta e, se avaliarmos bem os termos desta amizade, éramos os seres mais sortudos à face da terra. Quando a minha voz engrossou e o meu peito alargou, eu ensinei o rapaz a escavar a terra dura e desta forma encontrámos um texugo, dois lagartos e um coelho. Em contrapartida o rapaz ensinou-me a não lhes fazer mal, a soltá-los, a libertá-los para que escavassem eles próprios os seus labirintos, que não eram os nossos. Apenas se cruzavam, como o rapaz das jardineiras azuis se tinha cruzado comigo naquela manhã junto ao muro de pedra.
Ele chamou-me Isidora e eu não o chamei, fiquei com ele. Até as suas pernas se tornarem fortes como as minhas, um pouco mais longas é certo, até a sua voz engrossar, até as jardineiras se romperem, até ele ser corajoso e ladrar como eu, de tanta alegria. Ainda andamos por aqui os dois.



Dachshund, cão texugo






5 comentários:

Mar Arável disse...

"cães como nós"

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Curioso, Dachshund ou texugo, literalmente, significa cão do telhado.

Mais uma bela história a elevar-nos aos píncaros, perdão, aos telhados!

Vá, Isadora, do bolso aos telhados vai só uma pequena distância como aquela entre a infância e a idade adulta.


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 19 de Outubro de 2018

Graça Pires disse...

A Isidora é linda e contou muito bem a sua história.
És de facto uma contadora de histórias incrível. Estou à espera de um livro teu…
Uma boa semana, Manuela.
Um beijo.

Maria Eu disse...

Uma delícia, como de costume!

Beijo :)

mz disse...

Adorável este conto de adoção.

Sempre mágico.

Beijos