Despontaram as morganheiras-das-praias e o
feno-das-areias e junto aos muros cobertos de hera, as primeiras frésias de
fevereiro. O unicórnio foi ficando uma noite e um dia e a lua cresceu, minguou
e desapareceu e ele seguia o homem e o cão pela terra antiga e regressava com
eles à casa da torre. O homem tinha colocado os cordões raros num cesto de vime
junto à lareira para que o unicórnio os visse, pois acreditava que possuíam uma
finalidade, um propósito, por ora ainda desconhecido. E o unicórnio abanava a
cabeça para cima e para baixo, mas não dizia nada.
O homem imaginava o unicórnio possuidor do dom da fala,
embora não o pudesse demonstrar. Por isso relatava-lhe todos os acontecimentos
da aldeia, os passados e os atuais, como aquele cinzento que teimava em cobrir
as fachadas, as pedras da calçada e o cabelo das pessoas.
Numa manhã de sol apareceu um rapaz magro no quintal da
casa. O homem plantava amores-perfeitos nos canteiros, o cão dormia e o unicórnio
volteava por ali a tasquinhar ervas daninhas. O rapaz foi-se aproximando
timidamente, estendeu a mão direita, o unicórnio estacou à sua frente,
resfolegou, sacudiu as crinas e por fim cheirou-lhe a mão. O rapaz deu uma
gargalhada cheio de cócegas, pousou-lhe a mão no focinho, acariciou-o, observou
o corno, tocou-lhe com a ponta dos dedos. Tirou do bolso das calças um cubo de
açúcar mascavado e o unicórnio trincou-o.
O rapaz conhecia o homem que pintava e imaginava-o
possuidor do dom dos prodígios. Fora ele que desenhara nas paredes do seu
quarto um cavalo alado e desde então nunca mais tivera pesadelos. O rapaz
não gostava da escola, preferia deambular pela praia, apanhar conchas, procurar
cavalos-marinhos. Era um rapaz calado que gostava de cavalos e de prodígios e
jamais vira um cavalo assim.
Só nos livros, nas estampas e nos sonhos, disse-lhe o
homem adivinhando-lhe o pensamento. O rapaz fez que sim com a cabeça e sorriu.
O homem entrou em casa, pegou no primeiro dos cordões que o unicórnio trouxera,
colocou-o no pescoço do rapaz e pegando nele ao colo, sentou-o no dorso do
animal. Galoparam os dois pelas dunas, pela areia da praia e pela aldeia
dentro. Nos quintais estremeceram de espanto os pessegueiros em flor.
E todas as manhãs o rapaz aparecia, ajudava o homem,
tratava do unicórnio e do cão. Um dia uma rapariga seguiu-o e depois mais duas
crianças e ainda uma quinta, até que os cordões se acabaram no cesto de vime e
eram muitas as crianças que ao entardecer subiam no dorso do unicórnio e
galopavam pela praia e os seus risos semelhantes a um rio a correr. Lentamente
os cabelos das pessoas foram ganhando cor e quando alguém acordava com o cabelo
verde ou encarnado, isso era uma boa notícia.
O tempo foi passando, o rapaz cresceu e partiu. O cão
também. Os cabelos das crianças voltaram a ser castanhos, louros ou pretos e os
olhos das pessoas a brilhar, a refletir o sol na calçada. O homem envelhecera,
o unicórnio não. No entanto faltava ainda um trabalho que o homem queria
realizar. Comprou cem metros de tela branca, esticou-a nas traseiras da casa e
começou a pintar uma floresta cerrada, virada a norte, cercada por campos de
aveia, cevada e beterraba. Para que o unicórnio nunca passasse fome, para
quando o unicórnio quisesse regressar a casa. E deu-a por terminada.
Uma noite em que o homem dormia e sonhava, o unicórnio
retirou do seu pescoço o cordão antigo e colocou-o no pescoço do homem
dizendo-lhe, esta é a minha casa. Num salto, galopou pelos campos de aveia, cevada
e beterraba, embrenhou-se nas densas florestas do norte e o seu coração também galopava.
Esta é a história do homem que imaginava o unicórnio
possuidor do dom da fala, embora não o pudesse demonstrar.
o unicórnio
I - na ourela do mar
II - e o seu coração também galopava
16 comentários:
MANUELA BAPTISTA
... mas falava, falava quanto amava ...
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 5 de Fevereiro de 2016
Galopava o seu coração, como eu gosto de unicórnios, animais de raça, um só osso enfiado na testa, e as coordendas do unicórnio, tudo no unicórnio são coordenadas, a cavalgar, a desossada encosta às boxes, é Carnaval, Manuela, fale-lhe dos desfiles,
do Carnaval do Animais, do tric-trac das costelas,
rótulas com rojões,
tendinites à Alentejana,
hoje
há festival do chocolate, vão-se os molares ficam as gengivas, ou vice versa, fale-lhe dos unicórnios,
nunca seu nome será infame,
e sabe disso,
perdoe aos bois que perderam um galho e andam a fazer de unicórnios para disfarçar,
e agora vou desfilar, espalhar os meus ossos por Ovar, quero ser a anda coxa põe-tem em pé do Paulo Santana Lopes, e ter milhões de vértebras metidas numa cave em casa,
e a cave sou eu
Para o unicórnio, todas as vogais são brancas: são sempre uma desculpa para a espuma, quando chegar o tempo de voltar ao Mar,
ou ao Mito,
o que é idêntico
Domingo gordo, depois de sábado de aniversário :-*
"O homem envelhecera, o unicórnio não",
e nós também não :-)
Vim de Fátima, aluada, do recolhimento da Senhora,
só parada nas portagens pela Brigada da GNR, que já se habituou a ver uma cama rolada de Fátima ao Louriçal,
fizeram-me o teste das vogais, JAcintaA tem dois Ás e um I, e o A é negro, diziam elas,
e pudesse eu encolher os ombros tê-los-ia encolhido,
não posso,
encolho-me mas é toda cá por dentro, eu já sabia que tinha duas pegadas negras no nome,
fosse eu cega dos olhos, e o I seria violeta, como a cor do cair da noite, quando eles atacam,
da cor das vogais,
que tens aí, é um unicórnio,
não minha bem aventurada,
é uma visitação de São Vicente,
encostas quentes da Ilha do Fogo,
pudesse eu senti-los,
olhe, parabéns,
do alto dos meus 100,
invejo eu os seus lindos vintes,
bem haja :-)
Até eu senti o meu coração galopar enquanto li a tua história maravilhosa, Manuela. Tens uma imaginação prodigiosa e esta intimidade fantástica com as palavras certas...
Um beijo.
O meu cabelo também vai mudando de cor, dependendo do humor... Que pena que o unicórnio ainda não apareceu por aqui, acho que não gosta de clima quente!
Beijinhos Manuela
Bia <°(((<
Belas as suas palavras aladas
Sempre
Bjs
Acreditar no que temos quase a certeza mas não a vemos, apenas a sentimos, é ter fé na vida e esperança de que um dia essas coisas se revelarão sob qualquer forma.
É lindo escrever assim, eu adoro.
Obrigada Manuela.
Beijinhos
Um beijo de Koh Samui :)
boas viagens Intemporal!
Vai haver um dia em que unicórnio vai conhecer as opalas de Wello, e ficará o Unicórnio das Opalas, viajante dos mares turquesa :-)
e a minha imaginação também galopou ao sabor das palavras
tão belo isto!
beijinho
:)
Que maravilha viajar nestas histórias.
Parece que fazemos parte e deixamos que os acontecimentos nos pintem de outras cores.
Eu li e vi. Por que artes de magia as palavras fugiram? Até as tinha pintado para que ficassem gravadas
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