Simonetto










Não parecia um rato, mas o pai e a mãe eram-no e o avô e por aí atrás até ao seu tetravô tinham nascido e morrido ratos, daí a convicção firme dos pais, de que rato também seria. Chamaram-lhe Simonetto em memória dos seus antepassados e por ser seu pai, um apreciador apaixonado de ópera e de queijo gorgonzola.
Simonetto passou a infância numa zona residencial livre de gatos, em que as casas se alinhavam à beira dos passeios e as traseiras possuíam jardins igualmente alinhados onde os cães corriam a desalinhar os canteiros de rosa-chá e tulipas aveludadas. As famílias de ratos ocupavam as caves e as condutas de ar condicionado e assim durante a noite, acediam aos frigoríficos e às despensas enquanto as famílias de humanos dormiam. Era o equilíbrio possível entre espécies.
Nos momentos em que o pai, na sua voz de tenor, entoava as árias preferidas, Simonetto comparava a vida regrada e previsível do seu clã, com a daquelas personagens que ele tomava por verdadeiras. Os ódios, os amores, as vinganças, os disfarces, os assassinatos, os heroísmos, a beleza levada ao seu limite e a voz do pai, distinta daquele ser que era o seu pai. Um dia chamaram-no ao Conselho Superior dos Ratos e ordenaram-lhe que se calasse, que não cantasse mais, que as notas agudas alertariam os humanos para a presença de ratos, que o seu desvario musical colocaria em perigo aquela comunidade farta e rica. Simonetto assistia escondido a toda esta farsa e saiu em sua defesa, gritou que estavam todos enganados, que cantar era humano e que o canto denunciaria a presença de homens e nunca de ratos. Os conselheiros não gostavam de ser contrariados e ao olharem Simonetto, acrescentaram a pena infligida, pois para além de barulhento cantor, o rato pai tinha gerado um coelho e não um rato.
E o pai não lutou, entristeceu-se, calou-se. Simonetto subiu as escadas a correr e ignorando que ainda não era noite, entrou num dos quartos, abriu o roupeiro e olhou-se ao espelho, fez uma careta, mexeu a orelha esquerda, depois a direita. O espelho restituiu-lhe a imagem e o outro rato mexeu a orelha direita, depois a esquerda. Simonetto saltou, o outro saltou também. Simonetto rebolou-se no tapete a rir e riu tanto que não saberia dizer se o rato do lado de lá se ria ou não. Quando se aquietou, imaginou que para além das caves sombrias deveriam existir sótãos de onde se avistassem as estrelas.
Sobre o bairro das casas alinhadas à beira dos passeios e desalinhados canteiros de rosa-chá e tulipas aveludadas, caiu um silêncio de ratos.
E Simonetto partiu. Em busca do prazer, da dor, do ódio, do amor, da vida, da morte, da beleza limite que dá sentido às vozes, mesmo as de rato. Aprendeu a procurar alimento, a construir abrigos, a arreganhar os dentes e por vezes cantava a pensar no pai. E jamais sentiu saudades de um frigorífico repleto de parmesão e gorgonzola.











12 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA



... maravilhoso Simonetto que o mesmo quer dizer quem o conta ou canta e desenha o que é a mesma coisa!



Jaime Latino Ferreira
Estoril, 22 de Novembro de 2014

Rogério G.V. Pereira disse...

Um conto
de sonho
sobre o que acontece
a um rato que teve a sorte
de passar a infância
numa zona residencial
livre de gatos

Isa Lisboa disse...

Olá, Manuela! :)

Tem um presente aqui:

http://instantaneospretobranco.blogspot.pt/2014/11/premio-infinity-dreams-2014.html

Um beijinho e um bom fim de semana!

Beatriz disse...

Sorte do ratinho e seu queijo gorgonzola, que eu também adoro!!!!
Será ele primo de Ratatouille?

Beijinho e uma semana incrível Manuela!

<°)))< Bia

Mar Arável disse...

Mais uma bela história de vida

O surrealismo no seu melhor

Bj

Kika disse...

kriu?

O Simonetto, se fosse em loiça, seria similar a uns potes que vendiam na antiga e penso que já extinta Feira do Relógio, para guardar a colher de pau e outros utensílios básicos de cozinha e que ficavam lindamente nas respetivas bancadas, em cima de alegres naperons feitos à mão pelas avós...

Kriu!

Unknown disse...

Uma janela de sonho e um frigorífico carregado. No meio da história: Um ratito muito esperto...Sabe tão bem ler esta forma de escrever ...

Vitor Chuva disse...

Olá, Manuela!

Ratinho aventureiro e inconformista, o Simonetto: que trocou o certo pelo incerto e decidiu ir correr mundo, abandonando aquela vida de sufoco...

Linda história. Ou será que é metáfora com o rabo de fora...?

Abraço
Vitor

Rita Freitas disse...

Sabe sempre bem ler estes texto com perfume a magia.

bjs

. intemporal . disse...

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. ..."caiu um silêncio de ratos." .

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. sobre um manto e sob a forma de uma rara vereda . de afagos . carmins e aveludados . onde repousam por ora momentos calados . procedentes de tantos voos . alados .

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. encontrá.lo aqui . na quietude de uma ortografia que tanto tem de resplandecente . como de amadurecente . é uma bênção . que importa preservar .

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. íssimo . sempre feliz .

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manuela baptista disse...

grata a todos!

Agostinho disse...

Uma maravilha de conto.
Um rato/coelho/baritono!!!
em aventuras de imaginar...