No tempo quente dos pessegueiros em flor, o coelho
ganhava duas vidas. Numa delas, que ele não saberia dizer se era a primeira,
levantava-se cedo, vestia umas jardineiras de bolsos rotos, trincava uma
cenoura com rama e passava a manhã a tratar da horta, a regar as alfaces, a
preparar a terra para as túlipas e a erva-cidreira. Era organizado, meticuloso,
alinhava os pés de couve e os de salsa numa geometria estudada e quando
terminava, sentava-se a descansar sobre uma floreira partida. Depois conversava
um pouco com os vizinhos coelhos como ele e quando o assunto se centrava na
chuva e na acidez das maçãs reineta o coelho começava a piscar os olhos e a
bocejar de tédio e apressava-se a sair dali. Pelo entardecer tomava banho,
acertava os pelos do focinho, penteava as orelhas, pegava no contrabaixo e saía
para as ruas a assobiar. Sentia-se outro e esta vida que ele ganhava sabia-lhe
a bife com batatas fritas e ovo a cavalo e uns toques na banda Spring Rabitt’s
Quartet. Os seus dedos agilizavam cordas e acordes, a pata peluda marcava o
ritmo e o fascínio preenchia-lhe a noite e a madrugada.
Palmira era parente afastada da família Cervus e nascera
com orelhas de coelho. Até aos sete anos de idade obrigaram-na a usar gorros,
barretes e chapéus, mas de pouco lhe valia. Palmira era irrequieta, gostava de
dançar e ao terceiro passo de dança já as orelhas se soltavam e enrolando-se e
desenrolando-se em espiral, erguiam-na uns centímetros do solo e ela flutuava.
Palmira tinha um cordeiro branco com um laço encarnado ao
pescoço e todas as manhãs levava-o a pastar. O cordeiro era
assustadiço, frágil, delicado, mas gostava de cenouras acabadas de apanhar, de
água fresca e de sombras. Foi numa dessas manhãs que o coelho conheceu Palmira.
O cordeiro deambulava por ali e eles olharam-se com uma familiaridade natural,
como se o facto insólito de ambos possuírem orelhas de coelho os aproximasse. O
coelho falou-lhe das manhãs na horta e das noites do outro coelho que tocava
contrabaixo no Spring Rabitt’s Quartet. As orelhas de Palmira levantaram-se de
curiosidade e espanto e nessa noite, posto o cordeiro a dormir, perfumou-se e
calçou os sapatos de dança.
E por este tempo quente das ameixoeiras em flor, Palmira
ganhou outra vida.
14 comentários:
MANUELA BAPTISTA
e nós, tal como o coelho e Palmira, na confluência do Spring Rabitt's Quartett e sempre que escreves uma nova história, outra vida também ganhamos
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 2 de Abril de 2015
Nada como ter interesses em comum, características parecidas ou afins para que a aproximação aconteça. Nem que seja orelhas de coelho com pessegueiros e amendoeiras em flor à mistura. E a magia acontece...
Boa Páscoa para si, cara Manuela. Muito obrigada por este conto belíssimo.
Bj
Olinda
só duas...?
.
.
. faço tudo o que esteja ao meu alcance . para dar vida a ambas as vidas que "ganhei" há algum tempo atrás . numa esmoreço . por vezes . noutra arrebito . outras tantas . mas mantenho as duas . porque não é possível a coexistência de uma sem a outra . esta é a verdade .
.
. querida nelita,,, .
.
. uma santa Páscoa . é o que mais Lhe desejo . extensível a todos aqueles que . farão "naturalmente" parte . do Seu maravilhoso "habitat" natural .
.
. íssimo feliz . e que estes dias Vos sejam o peito em arco aberto .
.
.
Manuela
Muito obrigada
por este conto tão belo.
obrigado
pela visita
pelo comentário
...
Para si
os meus votos
de momentos de renovação
nesta Santa Páscoa.
Da minha parte fiz
2 posts
que nada têm a ver
com a Páscoa
http://pensamentosimagens.blogspot.pt/
http://tempolivremundo.blogspot.pt/
um beijinho
...será das amendoeiras em flor ou do coelho que tocava contrabaixo ou da Palmira irrequieta que me vejo a calçar os sapatos de dança e a ir ao concerto do "Spring Rabitt's Quartet"?
E...flutuando, entro nesta história deliciosa para lhe desejar uma Santa e Feliz Páscoa.
Beijinho, Manuela.
Estava a ler este teu delicioso conto quando comecei a vê-lo em desenho animado ao som do Spring Rabitt's Quartett... Terei sonhado?
És magnífica, Manuela!
Um grande beijo e uma boa Páscoa.
Há coisas na vida por que até os adultos se pelam: contos.
Contos a meterem bichos. Orelhudos.
Como sempre, num estilo próprio, magnífico em tempo de Páscoa.
Tenho andado com o portátil de braço ao peito e, por isso, não visitei as tocas todas. Foi minha recomendação - roam as orelhas ao coelho antes que ele dê cabo da nossa hortaliça! - Uma fábula de outro mundo.
Bj, Manuela.
É tão bom quando percebemos que podemos ganhar uma nova vida! :)
Um abraço, boa semana!
Adorei as cores, os cheiros, as imagens: felizmente que ainda não me chegaram as artroses ao nariz, e é assim que eu vivo a primavera, mesmo quando os do costume me abordam e me transformam numa jacinta a cavalo...
Olhe, bem haja :-*
Olá Manuela
nasci num dia de Abril
é o meu mês
e, quantas e quantas vezes
Olho da janela
...
vejo a "Natureza" à minha frente
respiro o ar puro
Cada dia que passa, AMO mais a "Natureza"!
mas isso sou eu
Espero que tenha passado uma Santa e Feliz Páscoa!
Estive fora 6 dias
precisava de momentos de renovação
e isso só consigo quando saio daqui... para longe!
Trouxe novas fotos dos lugares que visitei,
se quiser espreitar:
http://momentos-perfeitos.blogspot.pt/
Um abraço e bom fim de semana
Tulipa
Este tempo quente das ameixoeiras em flor que se instala sinuosamente e nos anuncia o verão, quando ainda mal a primavera chegou. Por que estará sempre os artistas em busca do verão de uma primavera e de um impossível verão de outro verão?... :-)
é tão eVidente, não é?
Entre o Brasil e Portugal uma escritora de encantar com seus contos :-*
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