Quis dizer-lhe, perdoa-me, agora serei eu a tomar conta de
ti. Mas a voz escondeu-se algures entre os pulmões e a laringe. Pegou-lhe com
cuidado, colocou-o sobre o ombro direito e ele firmou as patas traseiras e
equilibrou-se. Começaram a andar. Como um reflexo para afastar o medo, quase
escondidos, colados aos muros. O guardião-inseto ainda não se habituara ao seu
próprio corpo, mas à medida que avançavam percebeu que tudo mudara. A orelha do
rapaz era enorme e o cabelo que lhe batia no pescoço, um matagal. Quando ganhou
coragem e olhou para o chão, os pés do rapaz pareceram-lhe duas catapultas,
para trás e para a frente a atirar ervas ao ar. Sentiu uma tontura e esticando as
patas lançou-se num enorme salto aterrando dois metros mais à frente. Foi tão
inesperado que desatou a rir e o rapaz, esquecida a angústia que até aí o
habitara, foi contagiado e riram os dois durante aquilo que lhes pareceu uma
eternidade. O guardião-inseto, quando era apenas guardião, nunca tinha sorrido
sequer, quanto mais rido. Também não
tinha sonhado, mas isso, ele ainda não podia saber.
Por precaução afastaram-se das grutas e das aranhas e em
todo o caminho percorrido jamais o guardião perguntou ao rapaz, o que viste
dentro da gruta daquele que eu servia e que se revelou tão cruel para mim? Já
não lhe interessava e embora na aparência inseto, sentia-se agora mais humano
do que antes.
Foi então que entraram numa terra estranha e já todos
conheciam a sua história, que como todas as sagas, precede muitas vezes os
acontecimentos que descrevemos. Construíram uma casa de madeira com sete
janelas, duas chaminés, uma varanda toda à volta onde pousavam os pássaros e
duas enormes portadas verde-esmeralda. Muitas outras casas foram sendo construídas e a deles era a
terceira a contar do início da rua. O rapaz fez-se jardineiro e o inseto roía.
Passaram-se muitos anos e o rapaz cresceu e depois envelheceu, mas o
guardião-inseto não. Tinha sempre aquele ar de jovem couraçado a quem
ninguém ousa fazer mal e um dia ganhou asas e umas antenas de ouvir silêncios. E
o rapaz que já era um homem muito velho, disse-lhe, vou-me embora, fazer as viagens que
desejei. E acrescentou, não te esqueças de mim.
Como nem todas as coisas têm uma razão plausível, o guardião-inseto não se entristeceu, não se inquietou. E nessa noite sonhou que nascia, outra vez homem.
19 comentários:
E agente lê e sonha ...
Perguntas no final são tantas e chocam-se umas com as outras.
Nada resta. Apenas uma promessa:
- Nunca me esqueças ...
MANUELA BAPTISTA
Um guardião/gafanhoto está mais perto de nós do que nós sermos, eventualmente, guardiões de gafanhotos ou de sonhos ou do maravilhoso.
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 28 de Setembro de 2013
Kriu?
Eu também não envelheço... Mal de mim, se isso acontecesse, porque então só me restariam as inimigas, ai, as amigas que tenho no facebook para ter companhia para almoçar e jantar fora, e para dar à língua desenfreadamente, vício que trago comido desde miúda saloia, até hoje e para sempre...
Mas olha, se não fosse assim, não teria ninguém...
Já nem os camiseiros com ramagens tolas me alegram... Até a Merkel tem mais gosto!
Kriu!
Ora bolas, eu que vinha para levar a vacina da gripe, encontro mais um texto!
Esta coisa de se misturar a literatura com a enfermagem é de fato e no mínimo, estranha... e até nefasta...
Mas se serve para que sejas "poetisa", então está justificado! Não enroles é a língua nas tertúlias...
Do outro lado do espelho, nem sempre existem apenas quistos sebáceos!
Uma espécie de eterno retorno e cíclica renovação, não sem antes me deixar uma inquieta sensação de nostalgia e talvez de um certa tensão de equilíbrio, nisso que é a tristeza, que ele, apesar de tudo, não quis nem teve...
Um beijinho amigo
Olá, Manuela!
Há males que vêm por bem:mais vale ser insecto e livre, de que guarda da sua própria prisão...
E arranjar um jardineiro a fazer parceria com um insecto que roía,só mesmo aqui...onde não falta imaginação.
Bom fim de semana; um abraço
Vitor
Realmente nem todas as coisas têm uma razão plausível.
Bjs e bf de semana
Pela tua história fez-se luz, acho que os homens a sério já foram louva-a-deus e pela graça de Deus se fizeram homens, enquanto os rapazes envelhecem e, depois, vão procurar outros destinos, como se fossem meninos.
Mas fica uma pergunta: todos somos assim? não há os que descendem de vermes?
.
.
. eu "conheço" um "homem" que de.certo des.cenderá da generalidade dos vermes . até porque . "emprenha" sistematica.mente e ainda mais do que de uma mulher se tratasse . seja porque poros forem .
.
. pobre in.feliz . e sendo a Manuela uma Mulher feliz . nem sei porque lhe publica as provocações que aqui vem vomitar .
.
.
Quantas vezes não descortinamos as razões do que acontece...
Mais uma excelente hostória.
Com desenhos muito bons.
Gostei muito, como sempre.
Manuela, tem um bom domingo.
Beijos.
Um inseto humano ou um humano inseto?
Esta terra é mesmo estranha...
E nascer todo dia uma pessoa nova é o que faz a vida valer a pena!
Um beijinho Manuela
Bia
Minha querida
Hoje passando para dizer que estou a ser entrevistada no RECANTO DOS AUTORES, será um prazer a tua visita. Deixo o Link:
http://recantodosautores.blogspot.pt/
Um beijinho com carinho
Sonhadora
Porque a vida é feita por círculos,porque a vida se compõe por recomeçares,porque nem tudo na vida se explica, simplesmente acontece...
bjs
anacosta
E como os dois atravessaram a vida
juntos até que um dia aconteceu
a separação...
Desenhos excelentes.
Bj.
Irene Alves
não sei se fui só eu, mas o final deixou-me deveras surpreendida, e, fiquei comovida com todo o texto...
ando mais sensível do que o costume ?
um abraço Manela
beijo
:(
Depois que virou inseto sentiu-se mais humano? Claro. Eu sempre acho que a palavra humano anda meio distante do homem. rs
bacio
Kriu?
Tenho andado por aqui a passear pelos bolos, pelas agulhas e pelos poemas, a matar saudades, :)
Tal como o não sei quantos, mesmo que não escreva "saio sempre, daqui, de alma lavada."
Beijos amigos
Kriu!
eu tenho saudades é de apanhar uma asa de gafanhoto
fazem-me uns nervos com aqueles saltos
beijos amigas, miau
Dizem que os animais que se afeiçoam aos seus donos tomam-lhe os seus jeitos. Eu acredito.
Gostei muito deste conto.
Abraços
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