Quando nos habituamos às pessoas ou às coisas ficamos um pouco cegos às suas mudanças. Por exemplo estas árvores. Têm vindo a perder as folhas lentamente, a arrastar a modorra das quedas, uma aqui, outra ali, mais despidas, o ar a ocupar o vazio castanho encarniçado e de repente num dia sem nada de especial, verificamos que caíram dez folhas no mesmo instante. E logo mais dez e outras dez ou talvez vinte. O mais espantoso é que as ouvimos cair, um arranhar de unha no papel, um som que é e deixa imediatamente de o ser.
O mesmo acontece quando olho para ti, pareces-me tão pequeno e até as jardineiras são as mesmas que vestias ontem, mas há qualquer coisa no teu olhar que reflecte de uma outra forma a luz desta vela que acendemos e parece-me que os teus bolsos não são capazes de conter tudo o que queres guardar neles.
O rapaz ouvia distraidamente a mãe enquanto recortava estrelas de papel metalizado com uma tesoura de bicos e trincava pedacinhos de noz que ela ia quebrando para uma tigela. De vez em quando metia uma no bolso das jardineiras e pensava que já tinha nele tudo o que gostaria de ter.
Depois num daqueles momentos raros em que o tempo parece desfragmentar-se e tal como um disco rígido reagrupasse a informação que até ali permanecia separada, o rapaz levantou-se, largou a tesoura, as estrelas e a tigela das nozes e saiu levando o rato dentro do bolso.
Lá fora, Lulu deu um ronco de alegria. Cá dentro permaneceu a mãe e a imagem que ela tinha do rapaz.
Rolando era o mais esperto dos ratos do campo. Cor de terra, bigodes cinzentos, olhos vivaços, focinho alongado, pêlo desalinhado. Dizem que os ratos do campo vivem apenas um ano, mas como o tempo da infância é inversamente proporcional ao de todas as outras criaturas, a eternidade era para o rapaz e o rato o infinito absoluto.
Aquela sempre fora a sua casa. Perto dos homens e da água, farta em sementes e frutos. O rato gostava do rapaz e compreendia a linguagem humana e sobretudo adorava viajar no bolso das jardineiras, os olhos e o focinho a espreitarem, na emoção do caminho para a escola ou nas idas ao cinema em que as pipocas eram o prato principal. Quando se fartava desta forma de estar, desaparecia por muitos dias, feliz no meio das ervas e das árvores, escondido nas passagens secretas do poço entre os seus iguais a aprender as defesas e os ataques. As suas unhas eram farpas no corpo dos inimigos.
Quando Lulu chegara, Rolando tinha ficado assustado, ela era barulhenta, deitava água por todos os lados, roncava, pisava-lhe a cauda e quando lhe fazia uma festa com a pata dianteira não conseguia controlar tamanho e força e lançava-o a dois metros de distância. Mas ele era ágil na corrida, a saltar, a trepar às árvores e a nadar entendiam-se, igualavam-se na loucura dos mergulhos, ela nadadora de fundo, ele a driblar corridas à superfície. Rolando gostava do crepúsculo e da noite escura. Lulu gostava de tudo. Os olhos de um possuíam o brilho dos olhos do outro. O rapaz gostava dos dois.
No entanto e à medida que os dias ficavam mais curtos e os ramos das árvores mais longos, Lulu sentia saudades da imensidão do oceano, dos gritos das outras focas, dos cardumes de peixes a cortar as águas, do azul do Atlântico norte. A ferida sarara e o chamamento que ouvia era superior a todos os outros ruídos e aos sons que a tinham acompanhado nesses dias.
O rapaz dizia, um dia, um dia deixo-te ir. Mas a voz tremia-lhe e sentia um pico na palma da mão.
Finalmente chegou. Um cheiro a frio e a terra gelada, a neve nos montes, a pinhas queimadas nas lareiras, os pinhões a estalar. O rapaz segredou qualquer coisa ao ouvido do rato e pousou-o no chão, deu um longo abraço à foca até o pescoço lhe ficar a doer, acenou-lhe um adeus. Lulu bateu as palmas três vezes.
Rolando e a foca entraram no poço, o rato à frente na ligeireza da descida, Lulu aos tropeções. Junto das passagens secretas, aquelas que ignoramos o destino ou origem, Rolando escolheu decididamente a que tinha um enorme glaciar esculpido na pedra do arco e nadaram, o rato de focinho de fora, Lulu com uma pressa que a fazia leve e veloz.
E quando o nível das águas já não o permitiu mais sob pena de o afogar, Rolando parou, Lulu virou a cabeça e os seus olhos enormes lançaram-lhe despedidas.
Rolando deu meia volta e iniciou o caminho de regresso à sua casa, perto dos homens, vinte e cinco gramas de peso e um coração a faiscar.
rolando antes de o natal chegar desenho de mb
Rolando, dez gramas de peso
28 comentários:
MANUELA BAPTISTA
O quê, não me digas que do total de vinte e cinco gramas de peso que o Rolando tem ... só os seus bigodes pesam quinze ... ou é do tamanho ...!?
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 3 de Dezembro de 2011
Tudo muda, mesmo sem darmos conta disso.
E às vezs é preciso partir...
Os teus ratinhos são amorosos.
Mais um magnífico conto. Adorei, como sempre.
Querida amiga Manuela, tem um bom fim de semana.
Beijos.
Manuela,
A linguagem dos afectos é comum a todas as criaturas. Mas há palavras, como as suas, que têm o condão de multiplicar pontes entre as diversas margens...
Muito grato!
Beijo :)
E houve ternura na despedida...
Como sempre, um texto que nos prende!
Beijo
Manuela
Acho que já estou com saudades da Lulu, agora enfeitiçada pelo "mar ao fundo", o tal que ali sempre estivera, chamando, tentador, nesta fábula tão cheia de ternura! E o Rolando sentindo-se, quiçá, um pouco mais pesado que os seus vinte e cinco gramas advinham!...
Beijinhos e bom Domingo!
Quicas
ai Rolando Rolando
que sou exactamente como tu, não temos peso de gente, mas gordinhos somos em afectos e ternura...:)
um gordo e afectuoso abraço, à minha querida amiga Manuela!
ps: Lulu, boa viagem e se puderes dá notícias!
nandinho
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. a mudança agita a zona designada de conforto . à qual estamos sempre acostumados .
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. no en.tanto . a mudança é também crucial para re.agrupar o que se encontra . ainda que . temporaria.mente . des.fragmentado . na natureza . corpórea ou in.corpórea . e contribui para re.organizar o mundo . e todos os seres que nele se hospedam .
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. dão.se alvíssaras às farpas no seu papel selectivo .
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. e vinte e cinco grama representam também aquela unidade de medida que pesou não pesando numa in.evitável despedida .
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. [. gratíssimo pela presença primeira no aniversário terceiro do intemporal .] .
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. íssimo feliz . sempre verosimílimo .
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REspeito e amizade muito para além das raças. Apenas o entrave da própria natureza os separa.
Lindo.
Querida amiga
Amei o Rolando, apesar de ser uma criatura de Deus, tenho um pouco de receio, nunca sei se foi ele que assustou ou fui eu, os dois saímos correndo.
Lindo conto, cheio de carinho.
Uma linda escritora sempre tem imagens de harmonia.
Com muita alegria BJS.
Em algum momento todos têm que seguir o próprio caminho. Fabulaste de modo encantador, como sempre. Isso não muda.
Bjs, querida Manuela. Boa semana. Inté!
Texto muito bonito e comovente! Uma história pequena, porém grandiosa no seu cerne! Todos nós temos que tomar o timão de uma embarcação e seguir correnteza abaixo!
Parabéns!!!
Já volto, amiga Manuela.
Aqui quero ficar por largos momentos para me deliciar, como sempre!
Beijo
Ná
Deve ser de mim, ou será porque o Outono entrou já no Inverno e a Primavera está ainda tão longe, amiga.
Fiquei como a Lulu, com olhos de despedidas e o coração a faiscar, como o Rolando, com apenas 125 gramas e coração de gente grande.
Feliz o rapaz das jardineiras que habita a tua imaginação.
Parabéns Manuela, também pelas tuas magníficas pinturas.
Tomei a liberdade de partilhar no FB, já que não me dás a oportunidade de fazer hiperligação.
Espero que não te incomodes.
Beijinho
Ná
Auf!
Finalmente estou ainda mais elegante do que tu!
Auf!
Auf!
Béu, béu!
Quanto é 1.000 grama x 10 ?
Béu, béu!
Olá, Manuela!
Através do que ouvi da Ná acerca de si, cá estou eu hoje, finalmente.
E logo me estreio com uma linda história cheia de criatividade e imaginação que mete uma foca e um rato - que descritos assim por si até parecem gente... Parabéns!
Um abraço.
Vitor
Olhar para este seu desejo e imaginar
um rato assim...eu não tenho nojo
de ratos e até lhes acho uma certa
piada. Como sempre fabuloso o
seu texto.
Gostei.
Beijinho
Irene
Um poço mágico!
Pareceu-me ver a Lulu, adivinhei-lhe o brilho no olhar, a alegria do retorno ao seu universo líquido.
Quanto ao Rolando, direi apenas que o tamanho do coração não é proporcional à força do sentir...
E eu já sou sua fã.
Um beijo
Gosto de todas as histórias que falam do que contêm os bolsos das jardineiras.
Gosto, porque nelas cabem os afectos que podem ter o peso mais importante, no coração de todas as criaturas.
E a Manuela conta como nínguém, essas histórias...
Obrigada!!
Um beijinho
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. [20] . ver .
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. :))) . um bom feriado . querida nelita do meu coração .
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. íssimo .
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É impressionante o que fazes com as palavras, os contornos que lhe dás...transformando-as em belos contos literários. Dás forma e cor às personagens e encantas-nos com elas. Sublime tua forma de escrever!
Bj de admiração
BShell
Gostei daqui. Estou seguindo-te. Beijos!
Manuela,
O efémero encontro da Lulu e do Rolando contrasta com a intensidade e a riqueza dos laços afectivos que entre eles se geraram em tão pouco tempo de vivência.
Ela partiu despedaçada, ele regressa, de coração partido, para junto do seu amigo!
A história promete!
Bom fim de semana
Abraço
Tenha um excelente fim de semana.
Bj
Irene
"Quando nos habituamos às pessoas ou às coisas ficamos um pouco cegos às suas mudanças"...E dói! Dói a despedida de uma Lulu com a saudade estampada no seu vivo olhar mas que ouviu um chamamento que era superior a todos os ruídos e dói a separação de amigos tão diferentes mas que nas diversas "passagens" das suas vidas souberam encontrar este sentimento tão belo!
Lembrei-me da história do Rato do campo e Rato da cidade e adorei o Rolando, tão bem pintado por ti e acredito que o seu peso, é todo ele coração!
Beijo
Graça
a Lulu
o Rolando
o rapaz e a mãe
foram passar o Natal a um outro planeta
um abraço a todos!
o talento num texto impressionante.
gostei muito
beij
obrigada Pi!
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