infinitamente grande


Pode ser redonda, quadrada, oval, rectangular, hexagonal, octogonal, triangular, ter bancos de pedra, árvores, pássaros, um lago, uma estátua. Não interessa a dimensão mas o seu centro. E a inclinação da luz às oito horas de uma manhã. Por isso se diz, às oito em ponto da manhã. O momento, o lugar exacto em que convergem o branco da cidade, o sol, o desalinhado dos cabelos ruivos, o calcário e o basalto.
A flauta é Hohner, soprano e o estojo verde balança na mão direita. O compasso binário, as notas serão apenas duas, e, o canto mais simples das aves.
Complicado é o tempo em que se discute o leite achocolatado e as latas de salsichas são consideradas um luxo. Cachorro é um cão pequenino, podemos ter um? os olhos a brilhar de alta fidelidade, os latidos de festa quando chegamos a casa, a cauda a abanar como um espanador que é aquilo que afasta a dor.
Familiar é o que sabemos semelhante e nasceu connosco e colocamos o pé direito à frente do esquerdo como o ouvido do mesmo lado, virado o som das gaivotas e do rio, azul é o céu desta cidade branca e o saco da mãe cosido de pedacinhos de cor. A pasta às costas é anterior à invenção das rodas e do desejo estranho de fingir que se viaja para chegar à escola, exactamente no mesmo quarteirão.
São muitos os andares desabitados na certeza da existência das mansardas, dos telhados, dos sinos das igrejas, mas enfrentamos a incerteza dos outros que enfeitamos, transformamos, pintamos, contrariando o vazio que nos habita os velhos, os mendigos nas escadas, as mulheres que falam sozinhas nas esquinas, o senhor da mercearia que sabe escolher as laranjas de sumo adocicadas.
A camisola da mãe é preta, a do rapaz, da cor dos melros. E se a mão esquerda se fecha na mão direita é apenas para segurar o dia, obrigá-lo a construir segredos, a fazê-lo crer que o sol é feito de calções e de agasalhos de algodão, a dar os passos que damos, nas praças, nos largos, nas calçadas, em busca do centro de todas as linhas.
E não se perguntam para que serve um momento feliz. A mãe e o rapaz.




eu quero uma cidade de basalto e de calcário desalinhado o dia



óleo s/tela de mb 

pintura à vista  daqui






32 comentários:

Laços e Rendas de Nós disse...

Infinitamente íntimo como o pensamento colorido, que nos aquece, sempre que infinitamente grande...

Beijo

Unknown disse...

infinitamente grande e inspiradora esta escrita, na convergência de todas as linhas, onde desaguam todos os desacertados passos do dia, todos os gestos solitários de muitas mãos vazias, tão poucas as mãos nas mãos, e ninguem se pergunta para que serve um momento assim

bonita e ternurenta, a foto que a inspirou a escrever, a pintar


um beijo, Manuela!

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Eu quero um momento assim
feito de oiro e marfim
e que não me apontem rigor
onde só sobra o amor


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 15 de Outubro de 2011

Unknown disse...

La pintura me ha encantado. Bella imagen: la madre y el hijo de la mano.

Un abrazo.

Nilson Barcelli disse...

"Complicado é o tempo em que se discute o leite achocolatado e as latas de salsichas são consideradas um luxo."
Mais um magnífico texto. Brilhante, como sempre.
Manuela, tem um bom domingo.
Beijos.

. intemporal . disse...

.

.

. "São muitos os andares desabitados na certeza da existência" . que . embora efémera . alcançou há tanto a plenitude da dimensão que i.materializou o sonho . na materialização in.corpórea .

.

. por.que os momentos felizes permitiram a criação de raízes ascendentes . de entre o tão pouco e o quase nada . a memória é e será sempre o momento desalinhado do dia . tampouco como vaga .

.

. caminhamos a passos.avaros para a des.construção . e o pé direito é aquele que há tanto perdeu a firmeza sobre a calçada luzidia também e há tanto gasta pela des.ilusão . ir.realizável quimera .

.

. e o dia permanece por ora repleto de olhares átonos .

.

.

. íssimo . sempre feliz .

.

.

BlueShell disse...

Luxos...que não deviam sê-lo...
Uma escrita brilhante, convergência de questões que na sua multiplicidade são de todos nós.

Magnífico texto, Manuela.
Bj para ti e tudo de bom
BShell

AC disse...

Manuela,
Navega-se nas suas águas com olhos de espanto, mas sempre em segurança, pois sentimos que o barqueiro teceu de harmonia a sua arte.
Permita-me que hoje destaque "...se a mão esquerda se fecha na mão direita é apenas para segurar o dia, obrigá-lo a construir segredos, a fazê-lo crer que o sol é feito de calções e de agasalhos de algodão, a dar os passos que damos..."

Obrigado, Manuela.
Beijo :)

Kika disse...

Auf!

Tiveram sorte...

Tivesse eu passado primeiro naquela rua... que a sola dos sapatos decerto não estaria cinzenta... neste preciso momento!

Auf!

Anónimo disse...

e,



silencio.me. como se fora um prefácio :)



pf

Fabiana disse...

Bom te ler...
melhor ainda ver, através de seu olhar, a captura da profundidade de luz, relampejada rapidamente num diafragma paralelo.
Nas mãos que também não se aguentaram, a reprodução da outra ternura em cores tão mais doces e sutis.

Bjokas.

Bia

BlueShell disse...

Bom dia.fui hoje ao teu outro blog e gostei muito: dos pequenos mas profundos textos...das imagens...
o próprio Template faz as minhas delícias.

O meu blog foi criado em 2005, penso...altura em que meu pai faleceu. Queria mudar o template por este está desatualizado...não permite momtes de coisas...,as tenho receio de fazer asneira e destruir algo...
Portanto...fica assim....

Boa semana e obrigada por tudo.
BShell

ki.ti disse...

Esta história está muito mal contada!

e um gato? ninguém pergunta se podemos ter um gato?

Unknown disse...

Ki.ti

conheço um gato muito gato... está louquinho para te conhecer!

posso dar-lhe o teu e-mail?

ki.ti disse...

Quem? o Cegueta?

Manda-me uma foto para o facecatbook e eu depois logo decido

Mas toma lá uma turrinha, és um g'anda pássaro!

miaAu

Graça Pires disse...

Eu quero o desalinho dos desejos, o nascimento do caos, os gestos em sinfonia com um grito, para poder olhar o futuro como uma absolvição.
Um beijo Manuela e obrigada pelas tuas palavras.

Silenciosamente ouvindo... disse...

Construir através de um momento, de
uma fotografia tal texto é de quem
tem para além de uma grande
capacidade de escrita uma enorme
sensibilidade.
Bj

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

o que uma fotografia fez.

fico sem palavras para comentar tão belíssimo texto e o óleo que da Manela inspirada na foto.

parabéns e um

beij

Mª João C.Martins disse...

Quando a mão esquerda na direita se fecha, já não importa a cor da camisola. A fidelidade é como um raio de sol e os momentos felizes, guardamos no peito.

A sua criatividade é, juntamente com o seu talento, algo perfeitamente singular e delicioso.

Obrigada Manuela!!
Um beijinho

Mar Arável disse...

Excelente equilíbrio

na assimetria

Anónimo disse...

Gostei tanto, tanto... que não tenho palavras!

As imagens que pinta dali e daqui são todas elas mágicas. Palavras de pintadas de ternura que ecoam no peito.

Parabéns, Manuela.

Beijo

Unknown disse...

Eu quero uma cidade com a certeza das horas dos dias e das cores.
Quero que a vida aconteça com as certezas de cada hora e que as mudanças e os contratempos não sejam um modo de sofrimento humano.

Que os bancos sejam de pedra e que as formas sejam quadradas pouco me incomoda, mas a dor sim...

Dulce AC disse...

"Cachorro é um cão pequenino, podemos ter um? os olhos a brilhar de alta fidelidade.."

A vida é assim, neste acontecer de detalhes e por essa estrada, Manuela, jamais deixaremos de ir..lado a lado, em silêncio, mão na mão,sentindo em como era mesmo bom termos na nossa casa um cachorrinho, que é um cão pequenino.

Como foi bom viajar, consigo, nestas palavras de abrigo.
Obrigada..

Dulce

Linda Simões disse...

Conto mais lindo,esse!

Amiga tão querida,com histórias tão lindas,dá uma saudade...

Infinitamente grande.



Dois beijinhos,

Linda Simões

BlueShell disse...

Só para desejar um bom fds!
Beijo

Anónimo disse...

"Ter sempre alguém a quem dar a mão"



Beijinhos de uma mão que se quer dada


Filomena

alegria de viver disse...

Querida amiga

Estou confusa, achava que tinha comentado, pensei em fazer e não fiz, por isso estou tão atrasada.
Desculpe amiga.
Seus desenhos estão lindos, como sempre.
O texto é maravilhoso. Infinitamente grande é seu talento, sua bondade, sempre nos brindando com leituras de conteúdo.

Com muito carinho BJS.

Beatriz disse...

Estória tal qual a pintura, belíssima!!!
Tão singelos teus textos, que viajo neles e me sinto pequena ainda, aprendendo a toca minha flauta doce de madeira....
Bjs
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com

manuela baptista disse...

a todos

um abraço desalinhado

Olinda Melo disse...


Boa tarde

Através deste seu trabalho que encontrei na Net ao procurar imagem de 'mãe e filho' para ilustrar um poema de outrem, cheguei ao seu blogue.

Excelentes os seus trabalhos acompanhados de textos maravilhosos.

Assim, peço-lhe autorização para levar esta sua imagem para o Xaile de Seda, belíssima tela produzida a partir de foto como bem nos indica.

Abraço

Olinda

Olinda Melo disse...


Muito obrigada, Manuela.
A imagem já lá está e com os devidos créditos.

:)

Bom fim de semana.

Abraço

Olinda

Sónia M. disse...

Como foi bom entrar aqui e poder desfrutar de tão boa leitura. Obrigada. A pintura é maravilhosa.

Abraço