inevitavelmente falaremos


Inevitavelmente falaremos do alongar das noites, daquele espaço entre uma e a outra árvore do jardim onde, dizem, jaz uma rainha. Foi o que nos contaram e nós acreditámos, pois se raramente a verdade se comprova, há uma outra forma de entender as coisas e fazer a leitura dos sinais.
Ali naquele território atapetado, o sol apenas toca num reflexo breve sempre à mesma hora em cada dia, todos os dias do ano. A razão diz-nos que isto é impossível e desenvolvemos a ciência da inclinação dos raios solares, das marés intimamente ligadas às fases da lua, da improbabilidade da felicidade terreal, da impossibilidade da perfeição.
Éramos quatro à roda da mesa, os adultos andavam longe e ficava Ana, os cadernos diários, a borracha que se perdia, o pão com marmelada, o alguidar de cobre e o feijão de quebrar. Sabia o segredo dos bolinhos de coco, das tartes de maçã, das laranjas maduras e doce era a voz que nos sustentava a infância e as contas de somar. Ela dizia, os meus rapazes e nós sabíamo-la nossa sem perguntar onde estava antes de nós e para onde iria quando tivéssemos partido. Vestia-se de branco, o avental imaculado, os bolsos largos de onde no momento certo saía tudo o que fosse preciso. Um lenço, um lápis, a pomada para as queimaduras, um rebuçado Heller, redondo, enorme que quando se colava ao céu-da-boca, era um susto de morrer sem ar.
Parecia pouco mais velha do que nós, os olhos imensos espantados no canto dos pássaros, o riso que soltava a cada instante, as mãos fininhas que nos desembaraçavam os nós do cabelo. Era ela que nos acordava nas madrugadas geladas e nos incitava a ir à escola, a não mandriarmos pelos caminhos, a batermos as palmas em vez de chorarmos as frieiras nas pontas dos dedos. Dava um golpe certeiro nas castanhas e não se cortava, coisa que ninguém mais fazia.
Muitas vezes ouvíamos o segredar da casa “ela é estranha não lhe podemos exigir muito…” As palavras suspensas, o que não se diz é mais pesado do que o ar. E ela a nossa tia mais nova, tão mais nova que parecia um de nós, não fora o vestido, branco e nós as botas e os calções.
Quando as traves do sótão rangiam e os móveis estalavam e um invento de passos nos fazia rir e chorar, saíamos para o jardim descalços, enrolados numa manta e perto das árvores de muitos tons dos quais não iremos falar, Ana contava

num reino antigo que já foi aqui nestas terras mas não é mais, um jovem pastor trouxe de presente à sua rainha um cão de olhos meigos, dos que nascem no alto das serras e se fazem grandes e peludos e guardam bens e senhorias melhor do que qualquer homem é capaz e ela reconhecida pediu, toca a tua flauta para que eu entenda o ar rarefeito das alturas e a fidelidade de um ser

e ele tocou

então, num desgosto mal amado o rei louco de ciúmes, mandou matar o pastor, a rainha emudeceu de pranto e o cão postou-se à sua frente, de dentes arreganhados ao senhor e enfrentou-o como fera e lambeu as lágrimas da rainha porque bondosa ela era
vaguearam os dois pelas altas serras e nem a morte os separou

jazem ali entre as duas árvores, a rainha e o seu cão, da serra
e o pastor ficou disperso em canto pelos canaviais

Quando ela terminava, podíamos jurar que entre as duas árvores o cão ladrara, os olhos meigos pousados no chão, a água a afogar os juncos.
Ali naquele território atapetado na improbabilidade da felicidade terreal, nunca fomos tão felizes, nós os quatro. E Ana.


há outonos em que não queremos falar de folhas
a realidade é sempre maior do que a ficção


outubro de mb 





31 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

As lendas
que em meninos nos são contadas
ficam registadas
como verdades
que não se perdem na memória
Ficam marcas, sinais, saudades
das lendas e de quem as contou

(mais um texto com a qualidade
a que nos habituou)

Eva Gonçalves disse...

A realidade é sempre maior do que a ficção com c de cão, um cão com olhos meigos pousados no chão, sepultado com uma rainha sob as folhas de que não queremos falar, debaixo de um tapete de verdade pois se de felicidade no Outono se trata. :)Deixo-me ficar aqui entre as duas árvores ouvindo histórias verdadeiras e lendo os sinais...
Eu adoro esta música... aliás, todas do filme (e o filme!) :)Beijo e bom fim-de-semana!

manuela baptista disse...

...o filme, "a single man" de Tom Ford

gosto muito, Eva

as imagens deste vídeo não são exactamente as do filme, mas a música diz, o que eu queria dizer

um beijo

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


... diz a música, o que escreves e esse teu lindo desenho ...!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 1 de Outubro de 2011

AC disse...

Olhar em contracorrente, que sabe da importância das memórias. Por isso as aviva, por isso as reinventa, por isso as partilha.
Obrigado, Manuela|

Beijo :)

Anónimo disse...

e





o meu abraço muito muito muito grato.





pf

Nilson Barcelli disse...

Adoro as tuas histórias/contos.
Será que a tua "veia" foi despertada pela Ana?
Querida amiga Manuela, tem um bom fim de semana.
Beijos.

. intemporal . disse...

.

.

. há porém a amplitude simétrica . na as.simetria da palavra que se des.enrola sã .

.

.

. por.que nunca vã é a memória no dulc.íssimo timbre da e.tern.idade .

.

.

. íssimo . sempre e para sempre .

.

. f______e______l______i______z .

.

.

ONG ALERTA disse...

Talvez histórias eternas, beijo Lisette.

Kika disse...

Auf!

Cão que se posta é cão que no sabor aposta.

Meigos são os dentes que trincam um belo croquete.

Auf!

Unknown disse...

a este outono quente, de telejornais frios e medonhos, sem mágicas tias, sem histórias nem lendas que nos arregalem os olhos, que nos façam sonhar, sorrir e crescer, um outro se sobrpõe, se reinventa, se alinda, se aviva na memória de alguém...

é bonito demais o outono de que nos fala, Manuela!

inevitavelmente falou da tia mais nova, desse Ser "estranho" (?):)

singular, único... diria!

a música não poderia ser outra!

um beijo

Walter

ki.ti disse...

Dixa lá, de folhas falo eu,

dão as melhores almofadas esses tapetes estendidos ao sol!

Anónimo disse...

Se algum dia eu conseguir ser grande, é porque poderei escrever assim... então, as lendas voltarão a ser vida e outras "Anas" irão impôr-se ao imaginário de crianças vivas, à procura de sua fada madrinha!
... e a realidade dos "Outonos" irá espelhar-se na ficção!
Bjs e bom Domingo, Manuela!
Quicas

Penélope disse...

Ainda bem que falaremos de tantas coisas, minha querida!
E os bosques onde as rainhas são abrigadas em leitos eternos sempre são fascinantes.
Adoro e me encanto com tua forma de contar o MUNDO.
Abraços

antonio ganhão disse...

Talvez o Outono seja a estação ideal para se contarem histórias de rainhas errantes da nossa imaginação.

Anónimo disse...

Amiga Manuela!

Toda a tua escrita é um sonho, um feitiço, uma dança de palavras e de sentimentos expostos que me desperta a vontade de sonhar, de levitar.

Há algo, especialmente neste conto algo que me lembra Joanne Harris, a minha escritora favorita " o pão com marmelada... um rebuçado Heller, redondo, enorme ..."
Mas não, és tu, com um carisma muitíssimo bem definido e uma forma de escrita absolutamente divinal.

Também fomos quatro ... e houve um tempo em que fomos cinco.
Os contos há noite, sentados em roda, descalços, em terra morna, na eira ou à lareira, olhos nos olhos segredados, eram pura magia!
Foram as bruxas que levaram os bois da corte e o avô os foi buscar ao monte mais alto, lá perto do rei Cervo.
Foi a noite em que o avô acordou e não ouviu a respiração do gado, mesmo por baixo da cama, e quando foi à corte ... ouvia as bruxas à gargalhada. Então pensou estar ébrio ou febril, talvez louco...
mas ao alvorecer as vacas estavam todas mortas e agora jaziam entre a figueira maior que encostava ao caniço e os castanheiros, bem lá no fundo da ladeira onde agora há um enorme pomar, na quinta dos Santo Amaro.
Um dia, talvez ganhe coragem e te conte tudo.

Desculpa se me deixei embalar neste teu magnífico conto.
Ainda hei-de ler muitos livros teus.

Beijinho

alegria de viver disse...

Amiga querida

Outono a estação das folhas das cores da renovação.
Belo texto a arte do amor puro.

A realidade acontece nos obrigando a viver.

Linda semana, que seu coração bondoso se encha de luz.

Com muito carinho BJS.

Anónimo disse...

Absolutamente fantástico.
Vestia-se de branco e era tida como serviçal e um pouco desigual.
Nesta condição é excepcional, crucial, para ensinar o sonho, a magia que será sempre urgente na vida da gente.

Parabéns
Ana Sofia

Graça Pereira disse...

" A realidade é sempre maior do que a ficção" mas esta lenda primorosamente contada, é mágica porque ,tal como um verão dentro do Outono, ela alonga-nos os dias e dá para procurar aquele espaço no jardim entre duas árvores onde jaz uma rainha... e, talvez se não houver vento, oiça tambem o ladrar do cão de olhos meigos!
E tu fazes a felicidade daqueles que te leem!!!
Beijo
Graça

Mar Arável disse...

O Outono

é um apeadeiro
para os belos relâmpagos

Excelente texto

Mariazita disse...

Adoro lendas (publiquei bastantes) e a tua maneira leve e subtil de as contar torna-as ainda mais atraentes.
Todo o texto é uma maravilha, que apetece ler e reler.
Foi o que fiz...

Uma semana feliz. Beijinhos

Kika disse...

Auf!

E porque a realidade é sempre maior do que a ficção, que a tua cozinha seja sempre maior do que a tua sala, por todas as razões.

Auf!

manuela baptista disse...

e viva o pão ralado!

Mª João C.Martins disse...

Manuela

A delicada forma como escreve, as histórias e as memórias, é como um perfume que nos resgata do pesadelo e nos acolhe no berço das coisas mais simples e mais belas.

Estarei sempre grata, por ter o privilégio a ler.

Um beijinho muito grande

A.S. disse...

Envelhecem as folhas arrastadas pelas brisas de outono... mas ainda ardem no corpo caricias de verão!...


Beijos,
AL

Petrus Monte Real disse...

Manuela,

Bela história que encerra uma riquíssima lenda.
Leio e releio, não me canso da nobre atitude da figura real, do gesto carinhoso do humilde pastor, do cristalino som da flauta...

...da fiel e solidária reacção do "cão de olhos meigos"!

Perfeita ligação da vida à Mãe Natureza que nos traz a infância à memória e faz pensar num futuro melhor.

Muito grato!

Um beijo

Graça Pires disse...

Como eu gosto de histórias bem contadas, Manuela...
Um grande beijo.

vieira calado disse...

Muito escrito, este texto!

Bom fim de semana!

Bjsss

manuela baptista disse...

a todos

o meu agradecimento


manuela

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

lenda ou não, escrita de uma forma fabulosa como só a Manela sabe escrever.

extasiada saio...

beij

manuela baptista disse...

uma lenda inventada por mim :)