Em Junho, os frutos vermelhos, os morangos as ginjas e as cerejas, a mesma percentagem de açúcar, subtraindo alguns gramas até perfazer meio quilo, um pauzinho de canela, um toque de viagem. A mesa da cozinha estreita-se comprida, infinita. Faia, cerejeira, nogueira, carvalho talvez. Nunca fui grande coisa a identificar as árvores já mortas.
Mais tarde os pêssegos, amarelos, rosa, que precisam de calor no tempo certo e os outros avermelhados, cuja pele sai delicadamente, desfazendo-se em polpa e sumo. As maçãs guardam-se no sótão, adormecidas, perfiladas pelo chão sobre folhas de papel pardo, libertam um perfume a sidra, entontecem-nos desde a porta da rua até ao telhado.
Em pleno Agosto é o tomate maduro e doce, a sopa leva cebola, orégãos e ovo escalfado.
As uvas só em Setembro, antes das primeiras chuvas, para que sejam generosas como o vinho e nos tracem na garganta o travo, a terra, o mosto.
Ponto de estrada é aquele que caminha, permitindo-nos um rasto uma abertura, dois lados da mesma matéria. O assoprado é para rir e cuspir, o ponto de fio é para juntar dois dedos afastados e o de cabelo, é o de anjo magro, delicado. Ponto de areia tem saudades da praia, deixa a borda do tacho areado e seco. De pérola, é o paciente, aquele que espera o fio escorrer e formar uma jóia, um brinco. Ponto de rebuçado, quando explodimos e mandamos tudo para o outro lado, calda em água fria faz um barulho de vidro a estalar. E o ponto de caramelo é uma calda dourada onde navegam os pudins de ovos e o leite-creme.
É uma arte a ciência dos pontos de fusão, uma química e para que as compotas resistam inverno adentro, é preciso tirar o ar aos frascos colocando-os de cabeça para baixo, sufocando-os durante dois dias e duas noites. É um segredo criminoso passado de geração em geração à volta desta mesa, onde temperamos o borrego pela Páscoa, pomos em causa a existência de Deus, comemos pão com manteiga, pintamos a aguarela, prometemos coisas que nunca iremos cumprir, concluímos comovidamente que a existência de Deus é possível.
A luz desenha um brilho esbranquiçado na casca dos frutos aprisionando uma eternidade real e simultaneamente imaginada.
Pelas janelas abertas entra o cheiro dos campos, das vinhas e do estrume, o som da água a correr no tanque das regas e o coaxar das rãs.
Os cães enrolam-se-nos às pernas numa ternura calma. Salvos das estações dos caminhos-de-ferro, abandonados pelos caçadores, têm lugar cativo debaixo das nossas camas.
Este é o meu lado traidor do mar que me enterra os pés na terra alagada pelo rio, que me restitui o som das carroças nas pedras da calçada, o pó das estradas, os cantos de vindimar, o eco das vozes nas adegas, os agigantados tonéis. O que me embriaga no quarto dos que já morreram, no oratório onde um menino Jesus vestidinho de branco bordado nos petrifica com os seus olhos de vidro, nas noites de trovoada seca sempre em Setembro.
A memória tem pontos que nem a gente entende, basta abrir um frasco de doce de morango ou lamber o reflexo esbranquiçado na casca de uma maçã.
desenhos a pastel de mb
29 comentários:
A estas horas nem admira que seja a primeira a comentar... a minha filha foi para longe, mesmo sendo tão perto, e não consigo dormir :)Em primeiro lugar, ser recebida por esta canção do tempo do Abel Korzeniowski, do qual também sou fã, era mesmo o que estava a precisar... só me falta mesmo umas torradas com compota de laranja amarga que a minha avó Inglesa fazia todos os anos :) Traír assim o mar com os pés na terra, com todos os aromas e sons do campo, que também estão na minha memória... caso para dizer, que o texto está no ponto! De certo o mar, não levará a mal, rrss :) Beijinhos
MANUELA BAPTISTA
... que todas as traições sejam assim ...!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 3 de Setembro de 2011
estes "frutos" foi no mar que amadureceram, por tal, este não foi traído
é um conto maduro, adocicado, sumarento, pulverizado de cheiros que já nem lembro, e onde deixo a manina-do-olho a lamber os contornos de cada palavra...
obrigado Manuela, por este amadurecido Setembro!
um beijo
Fernando
Chegaram até mim os aromas doces e distintos das compotas, o vagar lento das tardes dedicadas a essas ternuras, o vidrado dos frascos etiquetados... o sentir que da terra se aproveitava o fruto e o ensinamento colhido no tempo de prática dos pontos.
Até há dois anos atrás, as compotas para a família chegada, eram tarefa minha. Por motivos de saúde deixei de as fazer. Sinto-lhe a falta.
Hoje, aqui, revi o fervilhar espumoso da geleia, o descaroçar das cerejas, os pêssegos em calda nos frascos vazios.
Beijo
a manina? :))))))
me me menina, concerteza!
as minhas desculpas pelo lapso!
de de esculpado maninho :))
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. ler este conto é encontrar um outro ponto . o ponto "g" . do de.leite suave e prolongado . pela palavra . que assim se des.fia e que assim se re.inscreve em todas as estações .
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. também elas in.temporais .
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. este é um momento magnífico . a afastar para sempre as sombras de um passado . já tão distante .
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. temos escritora . sem riquismos raquíticos . mas com a maior riqueza do mundo sempre presente . a de tão bem saber e.ternizá.lo .
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. íssimo . sempre feliz .
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Não me lembro de ter lido em lugar algum um outono tão doce e tão maduro.
Os pontos estão todos no ponto certo para nos trazerem à memória sabores e odores antigos.
Belíssimo!
L.B.
Manuela,
'A memória tem pontos que nem a gente conhece..."
A minha memória registra que em setembro de 1990,nasceu uma estrela em minha vida, a Gaby, que desde então alegra o meu viver.
Em setembro de 2010 há o registro de dias felizes em terra tão linda ( Portugal)"A luz desenha um brilho esbranquiçado na casca dos frutos aprisionando uma eternidade real e simultaneamente imaginada.
Pelas janelas abertas entra o cheiro dos campos, das vinhas e do estrume, o som da água a correr no tanque das regas e o coaxar das rãs.
Os cães enrolam-se-nos às pernas numa ternura calma"...
E são tantos os cheiros,as cores, os gostos...
E são tantas lembranças e saudades...
Obrigada.
Um abraço, apertado de saudade
Linda Simões
Querida amiga
Estou com a boca cheia de água, salivando com esta bela salada de frutos. Todas encaixadinhas numa bela paisagem.
Quanto mais leio mais perfumada fico, sinto os cheiros que se misturam num aroma novo.
Também visualizo a mistura de cores.
Quanto aos sabores estão guardados na memória.
Obrigada por tantas recordações, comparações perfeitas.
Com muito carinho BJS.
Boa noite Manuela,
"A memória tem pontos que nem a gente entende..." e não é que tem mesmo? Bastou-me vir até aqui para recordar o som dos carros de bois na minha rua enquanto adormecia os frescos anos da infância, o cântico da água a caminho da rega dos campos, o cheiro único a terra molhada...
Obrigada por todo o despertar de recordações.
Beijos
Um texto escrito com sabor a fruta madura. Uma pena que vou dos campos.
Alguma magia que sobrou de tempos passados/recentes.
E guardo outras palavras por desnecessárias. Vamos encher-nos de todas essas compotas, desses frutos e desse mosto....
Auf!
Milhares de pontos têm os croquetes, sempre que sabes escolher bem o pão ralado...
Auf!
Auf!
Méééé!
Depois desta página, fazes o favor de me devolveres a fruta toda...
Antes que amadureça!
E bem que podias revelar quem escreveu este conto...
Méééé!
Manuela, gostei tanto da mesa da sua cozinha!
Beijinhos
Mais um excelente texto.
Gostei imenso.
Querida amiga Manuela, tenha uma boa semana.
Abraço.
Querida Manela
Gostei do ritmo da tua cozinha e de como uns pontos bem sabidos deram ritmo e sabor à fruta da época...
Cá em casa,a marmelada já seca ao sol,coberta com papel vegetal e umas gotas de aguardente por cima...são tradições que se herdam.
Os pêssegos(a colheita esta ano foi generosa) tambem já cantam na panela de cobre e, ainda não sei, que ponro lhe vou dar....
No teu texto encontrei todo o encanto do mês de Setembro( o meu preferido) a azáfama das compotas e das geleias e poesia dos dourados e castanhos que a paisagem já se vai enchendo...O azul do mar compreende a tua necessidade de falares de outros ruídos, já que a memória tem muitos pontos para serem descobertos.
Beijo
Graça
São tantos os pontos que nos adoçam e nos unem por dentro. São tantos os Outonos e sempre tão iguais os odores e as cores que nos atraem.
Belíssimo!
Um beijinho
Este conto está muito avariado,
não sei como é que existem lugares perdidos entre vinhedos e não se vê um gato
mauiau!
Auf!
Vinte catar, Ki.ti!
Auf!
Auf!
Pude sentir cada aroma, cada cor, cada gosto...
Sinestesia pura!
Abraços
É Setembro e... o Outono está quase no "ponto"! Ponto por ponto, bago a bago, a vida continua, no "ponto" que melhor ou mais sabiamente formos conseguindo... até ao ponto final que, dizem (ainda não dei por ele e, espero, demore...!) é, se não antes, depois do inverno da vida...)
Beijinho
Quicas
Manuela,
Quando, por vezes, o equilíbrio se ausenta, para o encontrar basta-me mergulhar na sua prosa, onde as memórias das coisas parecem ter marcado reencontro...
Beijo :)
tão doce e tão apetecido este setembro que audaz promete já
o outono, que não tarda, chega..
beijinho grande grande Manuela, de tanto gostar, também de compota de...amora:)
dulce
Como as compotas dentro dos frascos as memórias também deve de ser armazenadas assim, em sufoco até ao dia em que nos apetece libertá-las.
Um texto fabuloso, Manuela!
E confesso que fiquei com sede do suco desses frutos...
Um grande beijo.
um abraço
ainda em setembro
manuela
Ah a memória...podemos sentir gostos, cheiros, tatos...podemos até ser felizes ao re - vivê-las...Afinal de que somos feitos senão de tudo o que vivemos? Grande beijo, minha escritora favorita,
obrigada Glorinha!
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